Entre peixe-leão e ocupações, comunidade em Fortaleza vela terra e mar para salvar sua história

Os pescadores do Boca da Barra, que encontraram os invasores peixes-leão na região da Sabiaguaba, são os mesmos que, há anos, lutam contra a especulação imobiliária e a ocupação que ameaça sua identidade ancestral

Foto: Arquivo pessoal

Era um dia como todos os outros. Roniele Suira vestiu a roupa de mergulho e entrou no mar para ver o que tinha lá embaixo. Estava na “cabeça de pedra”, um recife de pedras e corais que fica a um quilômetro para dentro do oceano, procurando peixe.

Faz muito tempo que a caça sub - ou a pesca de mergulho - é praticada na Boca da Barra, uma comunidade tradicional de pouco mais de 70 pessoas que vive no coração de duas áreas de proteção ambiental permanentes de Fortaleza: o Parque Estadual do Cocó e o Parque Natural Municipal das Dunas de Sabiaguaba.

Naquele dia, Roniele e o irmão haviam descido pouco mais de 13 metros de profundidade quando avistaram o primeiro peixe-leão, uma espécie asiática venenosa e sem predadores naturais que se alimenta de peixes e corais e vem ameaçando ecossistemas no litoral brasileiro.

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Os dois pescadores decidiram capturar o animal para enviar ao Instituto de Ciências do Mar da Universidade Federal com o intuito de fazer o registro e algum barulho para a necessidade de políticas públicas que controlem a disseminação do peixe, que se reproduz rapidamente. Depois, eles seguiram pescando mais adiante e retornaram àquele mesmo lugar, onde avistaram mais dois peixes-leão.

“Se chegar no rio, como vai ser isso?”, pergunta Suira. É que, se antes ele havia sido encontrado distante da orla, agora chegou à cabeça de pedra, a pouco mais de 1,5 quilômetro do encontro do mar com o Rio Sabiaguaba, de onde a comunidade retira peixes e mariscos para viver. A cada novo desequilíbrio neste ecossistema, um povo inteiro também se desequilibra pela insegurança alimentar e pelos impactos em práticas culturais no território.

Foto: Arquivo pessoal

A comunidade tradicional da Boca da Barra vive há anos em constante alerta, acostumada a observar “invasores” no mar e na terra enquanto luta para preservar a história de seu povo. Espremidos pela especulação imobiliária e pelos empreendimentos instalados na região nos últimos 50 anos, eles se sentiram invisíveis até mesmo com a criação das áreas de preservação ambiental.

“Diziam que o pessoal da Boca da Barra era dos índios, isolados”, conta Roniele Suira. Mas eles mesmos só passaram a gritar que eram uma comunidade tradicional ao serem expulsos do território cujos antecessores habitam ao menos desde o século XIX. “Antes a gente só vivia a nossa vida. Não tinha necessidade da gente se autoafirmar, porque a nossa Sabiaguaba era uma partilha de território”, explica.

Legenda: Roniele Suira tenta proteger sua comunidade tradicional na Boca da Barra
Foto: Arquivo pessoal

Desprotegidos por não serem reconhecidos como originários até 2020, eles viram o território encolher. Perderam o acesso a locais de memória, onde colhiam frutas como murici, caju, e ubaia pelas cercas de empreendimentos. Viram espécies de peixes desaparecer com intervenções como a construção de pontes e estradas. Espaços de referência foram sumindo e ameaçando a identidade da comunidade. 

É por isso que a Boca da Barra segue de olhos bem abertos, vigilando terra e mar. Lutando para permanecer e para preservar o meio ambiente que lhes dá força e alimento para sobreviver. “Nasci nessa comunidade para validar a luta dos meus mais velhos. Não consigo me ver fora da Sabiaguaba, longe da minha história. Sou uma reprodução dos que me antecederam aqui”, diz Roniele.

Proteger o território é honrar a memória de dona Chiquinha, rezadeira. De Raimunda Suira, parteira. De dona Helena, Neuza e Juraci. Das conhecedoras da encantaria que não chegaram a figurar a história oficial, que não foram escritas para a cidade. “Essas mulheres sempre serão referência. Elas ensinaram a reverenciar a nossa história”.

É por elas - e pela geração dos que virão - que um grito ecoa no meio da vigilância: “Nós queremos ser vistos. Queremos que a cidade conheça nossa história e que a narrativa não seja só a do colonizador”.

 
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