Barrado na bilheteria sem o dinheiro do ingresso, o menino cresceu vendo um abismo se abrir entre ele e o picadeiro. Quando rompeu a barreira, fugiu para ser palhaço e fez de tudo para ter seu próprio circo
Há um enorme abismo entre a infância de Jocileudo de Souza Simões e o picadeiro. Sempre que armavam um circo na pacata cidade cearense de Russas, a curiosidade sobre o mundo embaixo da coberta colorida crescia. Mas toda noite, a vontade do menino, que não tinha o dinheiro do ingresso, esbarrava na bilheteria.
Jocileudo ainda tentou algumas vezes pular a grade e levantar o pano de roda, uma tentativa de fisgar um detalhe qualquer do espetáculo. Mas a descoberta e a bronca sempre vieram antes que conseguisse concluir a empreitada.
A barreira imposta entre ele e o picadeiro só foi vencida aos 12 anos, quando assistiu pela primeira vez o espetáculo do circo Fico Fico, um pano de roda sem coberta que havia chegado em Russas. “Era uma coisa incrível”, lembra. Tanto que lhe despertou o desejo de seguir viagem com os artistas. O menino ainda conseguiu alguns bicos para vigiar o arame, mas, menor de idade, não conseguiu acompanhá-los.
“Ainda hoje, mesmo sendo maior, é difícil fugir com o circo. A família diz logo que é lugar de vagabundo, de forasteiro”, diz Jocileudo. Mas a coragem do irmão mais velho em acompanhar aqueles artistas depois o fizeram seguir o mesmo destino.
Foi até ele deixar um medicamento e nunca mais voltou pra casa. “Ali eu disse: pois agora não volto mais não”, conta. A mãe então bradou que ele estava livre para “quebrar a cara”.
“Nos primeiros dias, a gente quebra a cara mesmo. Quem é acostumado a viver na barra da mãe é que sofre mais. Ali, quando eu tava armando o circo e chegava seis da tarde, que era a hora que a mãe botava minha janta em casa, eu enchia os olhos d'água”, conta Jocileudo.
Mas ele não desistiu. Trabalhou três anos com o irmão, com quem aprendeu vários números circenses e virou palhaço. O nome? “Limãozinho, que é pra azedar os outros”. O talento para o picadeiro o levou a trabalhar em outros circos, até que, já cansado, decidiu passar algum tempo na casa dos pais.
Limãozinho pedalava nas ruas de Russas, no caminho para a cerâmica onde estava trabalhando, quando avistou o palhaço Palitinho.
– Limãozinho, tô sabendo que você tava trabalhando em circo. Quer comprar o meu? – perguntou.
– Como?
– Por 700 reais.
– Rapaz, eu troco em uma bicicleta e uma televisão.
O acordo improvável foi firmado. “A televisão era de mamãe, e deu uma confusão grande”, conta. A irmã assistia o programa “Topa Tudo por Dinheiro” quando ele interrompeu a exibição para pegar a TV. A mãe, indignada, reclamava ao marido: “Seu filho! Trocou minha televisão num circo!”. Limãozinho tentou apaziguar: “Mãe, não se preocupe que amanhã eu tiro uma nova pra senhora”. Ela torcia o nariz, descrente.
Mas o novo dono de circo estava confiante. No dia seguinte, fez um crediário e comprou na loja uma televisão colorida de 20 polegadas, modelo muito melhor que a televisão preto e branco que usara no negócio. Limãozinho começou o circo praticamente sem artistas. Contratou Regina, com quem se casou pouco depois, e um colega.
“Quem começa com um cirquinho tão pequeno, de baixo, nunca acha que vai conseguir chegar muito longe. Graças a Deus hoje eu sou feliz”, ele diz. Orgulhoso, enumera a estrutura do circo, com cadeiras, trailers, som e carros para o transporte. E tenta não esmorecer diante dos estragos da pandemia.
Limãozinho retornou com a família para a casa da mãe durante a quarentena e passou a vender de algodão doce a maçã do amor. Viu os artistas que trabalhavam com ele debandarem com a crise sanitária e irem trabalhar em outros ofícios. Ficou com as esposa, os três filhos e dois netos para seguir adiante sob as lonas.
“A pandemia massacrou muito a gente, mas consegui melhorar a estrutura do circo”, conta. Recentemente, conseguiu venceu projetos culturais públicos e conseguiu trocar a marquise, ampliar a lona, reformar a fachada. “Hoje estou feliz, mas a história do circo, se você for pegar bem lá do fundo, é triste”.