É sempre um choque ver casos de assédio escancarados. Nós, mulheres, convivemos com ele todos os dias. Gritamos contra o machismo e o patriarcado quando expomos o que vivenciamos cotidianamente, por mais difícil e doloroso que seja. Nem todas conseguimos fazê-lo, embora seja praticamente impossível ser mulher e não ter tido o corpo tocado indevidamente em algum momento. Difícil ser mulher e não conhecer um caso assim relatado por alguma amiga. O assédio e a violação nos rondam cotidianamente, muitas vezes praticados por um homem qualquer, tantas vezes conhecido. Mas é sempre um choque.
Na última semana, a questão gerou uma forte crise no coração do governo federal. Um ministro de Estado foi acusado por várias mulheres de cometer assédio. Uma das supostas vítimas seria uma colega sua, também ministra. O tema que já é complexo ganhou novas camadas pela racialização: ambos são pretos e, portanto, estão mais vulneráveis ao tribunal da internet de uma sociedade estruturalmente racista.
Não cabe escolher pautas. O assédio e as violências contra as mulheres estão por toda parte: no ponto de ônibus, no elevador, na empresa privada, nos órgãos públicos, em todos os escalões e espectros políticos. Quem não lembra do rapaz que sentiu-se no direito de tocar corpos de mulheres dentro de um elevador videomonitorado em Fortaleza? Ou mesmo do ex-presidente da Caixa Econômica Federal, que virou réu ao ser acusado de assédio em 2022?
Nos últimos dias, também vimos o caso de uma francesa dopada pelo próprio marido para ser estuprada mais de 50 vezes por homens desconhecidos. Todos sabiam que ela estava sendo drogada e não consentia os atos, mas mesmo assim aceitaram o recrutamento bizarro em um fórum na internet.
Não existe um perfil do assediador. A sensação é de que estamos sempre desprotegidas, por isso caminhamos por ruas escuras com o dobro de atenção, olhando para os lados. No trabalho, nos preocupamos em impor limites e vigiar. Até mesmo em casa, muitas de nós não pode baixar a guarda. E nem assim conseguimos evitar essas violências. Até porque não cabe a nós, mas a toda a sociedade.
A jornalista Flávia Oliveira defendeu um protocolo para que os governos afastem denunciados por assédio, dando tempo para as investigações e para que prepare sua ampla defesa, também um direito básico. Caso seja inocente, o acusado retornaria ao seu cargo. No Senado, um projeto de lei que torna o assédio sexual crime de improbidade para funcionários públicos está parado, sem relator, desde maio de 2023.
É preciso levar adiante os dispositivos legais que possam proteger as mulheres, dentro e fora dos governos, na vida cotidiana das ruas. O caso do ministro negro acusado de assédio é grave e doloroso, mas não podemos embaralhar as pautas a ponto de reduzir lutas diante da complexidade do mundo real.
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Nada do que aconteceu reduz a bandeira antirracista que devemos encampar. Casos como este se repetem em todos os espectros políticos, o que diferencia é a forma de lidar com eles. Talvez tenhamos perdido todos em alguma medida, mas é preciso consciência e discernimento para seguir adiante na luta por nenhum direito a menos, especialmente numa sociedade em que mulheres pretas estão na base da pirâmide.
Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.