'Ok, Anitta': nem shortinho, nem postura, o único culpado pelo assédio é o assediador

Motorista de aplicativo que assediou adolescente diz que o fez porque ela usava "shortinho tipo Anitta". Como pode se achar tão confortável em tentar justificar o injustificável?

Legenda: O caso em questão: 0 motorista de aplicativo André Lopes Machado, 43 anos, filmado assediando uma adolescente de 17 anos durante uma corrida em Viamão, na Grande Porto Alegre (RS), no último domingo (16/2).
Foto: Reprodução/TV

Eu tinha 16, 17 anos quando virei chacota entre amigos de um ex-namorado por minha mãe não permitir que eu andasse de táxi sozinha. "Prefiro que você vá de ônibus", ela dizia. Os caras, todos homens, achavam uma grande frescura, colocaram-me apelidos e riam da minha cara.

Em um dia fui para casa de um deles de táxi, sempre enviando para minha mãe mensagens informando que estava tudo bem (a pedido dela). Quando cheguei, mais algumas horas de piadas constrangedoras. Eu ria junto, claro, tentando fazer parte daquilo e fingindo não ligar.

Eu não fazia muita ideia de qual era o motivo da minha mãe não permitir eu andar de táxi, um método de transporte que me parecia bem seguro. Eles, ao contrário de mim, pareciam estar bem certos da resposta: frescura. 

Corta para 2020. Uma menina de 17 anos se filma enquanto é assediada por um motorista de aplicativo de 43 anos. O homem diz coisas como "tenho idade para ser seu pai, mas faria coisas que seu pai não faria" ou "problema seria se tu tivesse 13 anos. E eu acho que tu não tem 13 anos… de 14 pra cima, tu já é responsável". 

Você, homem que me lê, faça um exercício: quais as suas preocupações quando tem que pegar um carro dirigido por um motorista de aplicativo? Talvez com que ele não pegue uma rota errada, talvez para que ele esteja atento ao trânsito e, talvez até, um receio de ser assaltado.

Posso então dizer quais os meus: sentar atrás do motorista, checar todos os dados, manter o celular carregado e com internet, qual roupa estou vestindo, ficar atenta a qualquer movimento, não puxar muita conversa, observar como sair do carro rápido, manter a alça da bolsa a postos, não aceitar balinhas/água/qualquercoisa, manter alguém avisado sobre a rota e, claro, avisar para alguém que chegou. Tudo pelo medo de ser estuprada. 

A menina que gravou o motorista, bem esperta e de uma geração que vem sendo a todo instante informada sobre as lutas das mulheres, identificou de cara o que estava acontecendo: ela estava sendo assediada.

Tomou suas providências de gravar e publicar o que estava passando por ali. Depois, reportou ao aplicativo, a família e a polícia. 

(Sim, eu já escrevi por aqui sobre assédio e quando eu era criança/adolescente, passei por diversas situações que só identifiquei que foram assédio na vida adulta. E aí está a importância de, a todo instante, reforçar a quais situações as mulheres estão expostas para que nós estejamos fortalecidas e cientes sobre como agir. Ela soube. Ela percebeu que era assédio, ela teve a clareza de gravar, ela sabia o que estava acontecendo ali) 

Mas aí aconteceu o óbvio, o assediador não reconhece o ato e culpa a vítima, dizendo que ela estava com "shortinho tipo Anitta" e com as pernas abertas. O que sempre me impressiona (apesar de não surpreender) em situações como essa é como homens se sentem confortáveis em soltar esse tipo de declaração, mesmo após terem sido filmados (às vezes, inclusive, dentro de uma casa vigiada 24h, como o BBB), mesmo após terem ido dar depoimento à polícia, mesmo após estarem cientes do que fizeram. Ainda sim, se sentem no direito de dizer que a culpa, no caso, foi da roupa que a mulher usava ou qualquer outra razão absurda.

E porque isso?

Porque eles tem o aval social para dizerem isso. Porque há quem concorde. Porque já houveram inúmeros casos em que a culpa de um crime horrendo como o estupro recaiu sobre a mulher.

Porque mulheres seguem tendo que ouvir nas delegacias o que elas fizeram para provocar. Porque há anos somos retratadas, na vida e na arte, como seres inescrupulosos sempre usando da arma sedutora para acabar com a vida de homens inocentes, assim como somos apenas objetos para observação e uso sexual, sem valor humano para uma sociedade patriarcal, machista e misógina. Porque vivem em uma sociedade em que ele está no topo do poder. E a sua fala, versão e narrativa sobre qualquer história é mais crível que a de qualquer mulher. 

Esse homem se sente tranquilo em declarar para uma série de jornalistas que "caiu no jogo" de uma adolescente e que ela não estava desconfortável porque riu enquanto ele dizia os absurdos. Porque seguem achando que assediadores e estupradores são aqueles monstros que atacam na esquina enquanto a mulher grita por socorro.

E não colocam na conta os crimes que acontecem em casa, por pessoas da família e conhecidos, o estupro marital, o medo que nos faz congelar, a socialização feminina que nos faz tentar ser agradáveis até com quem está sendo terrivelmente desagradável conosco, entre outras tantas variáveis da mesma dor: a de que todas nós estamos suscetíveis ao assédio e ao estupro. 

E não, não estou exagerando quando coloco o estupro ao relatar esse caso. Como diz Joice Berth, "não existe outra reta de chegada ao assédio que não seja o estupro". E seguiremos alertando e gritando aos quatro cantos que não seremos culpabilizadas pelos crimes que homens cometem conosco.

E como a própria Anitta disse, usar o shortinho tipo ela...

Eles odeiam mulheres conscientes, donas do próprio corpo, da própria sexualidade e da própria história. Então, reforçamos todos os dias: A culpa não é da nossa roupa, não é da nossa postura, não é de nada. O único culpado pelo assédio é o assediador. 

Minha mãe tinha razão.