O setembro amarelo e o janeiro branco

Diante de uma morte por suicídio, é preciso repensar o nosso modelo civilizatório, pois oferecemos um mundo que para muitos, não há prazer em habitar

Legenda: Quando alguém diz que a vida não vale a pena, que seria melhor se não existisse, é importante procurar entender quais as tensões, pressões e sofrimentos diante dos quais essa pessoa se encontra que a coloca em situação de dor insuportável e desespero
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Existem assuntos tabus: sexualidade e morte, por exemplo. Os dois nos confrontam com sentimentos que não controlamos e com questões existenciais complexas que envolvem a relação conosco, com o outro e a forma como podemos amar a nós e aos outros. Diante de uma morte por suicídio, é preciso repensar o nosso modelo civilizatório, pois oferecemos um mundo que para muitos, não há prazer em habitar. Tema interprofissional, intersetorial, interseccional, é fonte de discussões ao longo da história em diversos campos de saber: filosofia, sociologia, artes, medicina, psicologia, psicanálise, provocando tensionamentos, inquietações, enigmas devido a sua complexidade e multicausalidade, constituindo contemporaneamente segundo a Organização Mundial de Saúde, questão de saúde pública.

Enquanto fenômeno complexo e multicausal nos apresenta diversos desafios: como estabelecemos conexões e vínculos confiáveis, protetivos, cuidadosos; como desenvolvemos um mundo interno onde nos habite a fantasia, criatividade, a esperança, a confiança em nós e nos outros; como podemos ter acesso a uma vida digna que permita adequadas condições de trabalho, moradia, acesso amplo e de qualidade à saúde em diferentes níveis de atenção.

Além disso políticas de educação que contemplem projetos em saúde mental, que envolvam professores e toda a comunidade escolar, que promovam espaços para discussão dos temas importantes para as demandas adolescentes como: racismo, expectativa de emprego, Enem, conflito familiar, ansiedade, depressão, relacionamento abusivo, bullying, dificuldades com aprendizagem, uso abusivo de álcool e outras drogas, sexualidade, relacionamentos interpessoais, uso das redes sociais etc.

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Também a oferta de políticas públicas de arte e cultura enquanto possibilidade de enfrentamento ao embrutecimento e ampliação dos recursos simbólicos, redução das desigualdades sociais, programas de desenvolvimento comunitário. Como construir recursos internos e externos para recebermos cuidado diante do medo, da angústia, do desespero, das perdas? Como manter potências que nos envolvam em esperança diante dos dias difíceis?

O ano começa com a campanha do janeiro branco, que deveria envolver todo o ano porque são as políticas públicas de saúde mental que diminuem os indicadores de suicídio, pois a presença de um CAPS diminui em 14% os indicadores de suicídio no território.

O adoecimento possui marcadores relacionados às condições materiais da existência no entrecruzamento de raça, classe social e gênero, sendo possível a prevenção quando se realizam políticas de saúde mental no trabalho, empoderamento sócio econômico das mulheres, ampliação das colisões comunitárias, enfrentamento de situações de violência, desastres e catástrofes, acesso aos serviços de saúde mental, ações voltadas para a primeira infância, restrição de acesso a pesticidas e a armas, barreiras de proteção em espaços críticos da cidade.

Bem como a inclusão para pessoas com deficiência, políticas públicas de saúde mental para população indígena com fortalecimento identitário e respeito aos valores culturais e patrimônio econômico, políticas de habitação, esporte, arte, qualificação dos profissionais da atenção primárias, ambulatórios de saúde mental, ações intersetoriais, diminuição do estigma com pessoas com transtorno mental, acompanhamento contínuo após alta hospitalar em caso de tentativa de suicídio, matriciamento, supervisão e condições adequadas de trabalho para os profissionais do CAPS.

Outros fatores são ações para prevenção ao uso abusivo de álcool e/ou outras drogas, construção de habilidades de solução de problemas e acesso a serviços integrados de saúde, ampliação dos vínculos sociais de solidariedade e rede de apoio, fortalecimento dos vínculos de amizade nos espaços educativos, enfrentamento às diversas situações de violência, bullying, programas voltados para populações vulnerabilizadas, diminuição das desigualdades sociais e ampliação dos investimentos em saúde pois apenas 2 dólares por pessoa/ano são investidos em saúde mental no mundo.

Existem muitos mitos diante do sofrimento: algumas pessoas acham que falar sobre o tema pode incitar a conduta suicida, entretanto uma escuta amorosa e cuidadosa ajuda a encontrar alternativas para a dor e potencializar os recursos, além de mobilizar a rede de apoio; outros acham que quem ameaça não será capaz de realizar atos de agressividade contra si, entretanto toda ameaça de fazer dano a si deve ser levada a sério; outros pensam que quem tentou não irá fazê-lo novamente, no entanto, a existência de tentativa anterior pode ser grande preditor de novas tentativas caso não tenha havido a manutenção dos cuidados ou as situações precipitantes se mantenham.

Quando alguém diz que a vida não vale a pena, que seria melhor se não existisse, é importante procurar entender quais as tensões, pressões e sofrimentos diante dos quais essa pessoa se encontra que a coloca em situação de dor insuportável e desespero. É fundamental acolher, ajudar a encontrar ajuda profissional, não julgar. 

Buscar ajuda

A ajuda pode ser de um profissional de saúde de confiança, pode ser através da atenção primária, nos postos de saúde, que irão avaliar a necessidade de encaminhamento para o CAPS ou em situações graves, indo diretamente ao CAPS. Caso alguém esteja em risco em casa, pode ser acionado o Samu e se houver quadros com complicações clínicas, necessita do suporte das UPAS ou hospitais. Infelizmente não temos uma linha de crise 24h aliada ao SUS, mas existe o CVV número 188, que funciona 24h.

A pessoa não deve ser hostilizada, atacada, culpada e deve ser fortalecida no seu desejo de viver, confiando na ambivalência que está presente no comportamento e na possibilidade de ressignificação diante de uma tormenta emocional.Todos diante de uma crise precisam de ambiente estável e suporte de pessoas queridas. A família deve receber orientações sobre como ajudar, e é preciso avaliar se a pessoa se encontra sob situações de outras violências e qual a rede de proteção social pode usufruir. 

Caso alguém esteja em profundo desespero, pode ser difícil enxergar sozinha alternativas ou esperança. Nessas horas encontrar uma boa equipe profissional, compreender o que atravessa esse sofrimento, construir junto com a pessoa, um projeto terapêutico singular e garantir presença da rede de apoio são estratégias valiosas.

O sofrimento, quando recebe os cuidados necessários, pode ser atenuado. Pessoas com transtornos mentais graves podem e devem ter uma vida digna com cuidados e apoio, trabalho e renda. Pensar a forma como lidamos e produzimos sofrimento na sociedade é tarefa de todos continuamente; como construímos nossas relações humanas, quais os valores desenvolvidos na sociedade, quais os recursos que temos para lidar com o desespero, com a angústia e a dor, como acolhemos e lidamos com as diferenças e criamos ambientes possíveis de viver e sonhar.

O suicídio mostra a existência de uma dor insuportável, constante, angustiante, que transborda a capacidade de esperança do sujeito, revela que somos violentos e destinamos nossas dores e nossa fúria sobre nós e os outros. O silêncio sobre o suicídio é o silêncio sobre nossa destrutividade, nossa finitude, nosso desespero, nosso desamparo, pois  demonstra as complexidades, os enigmas e a ambivalência da vida e revela para a sociedade os seus males e expõe os sofrimentos dos que nela vivem, assim como questiona sobre as formas de cuidado e atenção com o sofrimento psíquico. 

Diante dos dias difíceis é preciso fortalecer os cuidados, a esperança, os pequenos gestos que ampliam o amor e a confiança. É preciso ficar atento ao olhar sobre si mesmo, é preciso olhar para quem precisa do seu olhar de cuidado e esperança. Diante dos dias difíceis, pode ser tentador o cansaço e o desespero, pois podem acionar registros de quando crianças e que nos sentíamos incapazes de resolver sozinhos muitas das coisas que hoje adultos possuímos mais autonomia e recursos para fazer.

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Cuide da sua criança interna que pode se desesperar, e das crianças que precisam de você para que entendam que têm um adulto ao lado capaz de protegê-las, cuidar e que elas podem confiar. Sempre podemos fazer algo diante de um dia difícil.  Continuar existindo, pensando, falando, sentindo, em solidariedade, criatividade, amor e trabalho é abrigar a vida para que ela tenha solo fértil diante da intolerância, da morte que aniquila, silencia, despreza e corta, desliga afetos e projetos de vida.  

Cada indignação diante da morte e do desprezo pela vida de brasileiros deve nos deixar mais atentos para o cuidado. Se o dia amanheceu e estamos vivos, potencializemos ao máximo a distribuição de gentilezas conosco e com os outros e exijamos políticas públicas de prevenção em saúde mental de janeiro a janeiro, para que experimentemos cotidianamente a sensação de que quando a dor nos atravessar, sobreviveremos porque mesmo quando não conseguirmos cuidar bem de nós, haverá onde pedir e encontrar ajuda.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor. 

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