Brincar de cuidar de 'bebês reborn' e a tentativa de superar frustrações
Dedicar tempo, afeto e amor a um “bibelô” tão verdadeiro como as “fake news” nos transporta para um mundo de ilusões, nos alienando de uma realidade dura de se conviver
As pessoas envolvidas nesta relação de cuidar de um “bebê de mentirinha” revelam mais quem elas são, do contexto de onde vêm, do que quem são estes “bebês fakes”.
Quando as crianças, sobretudo meninas, brincam de ser mães, cuidando de suas bonecas, penteando os cabelos, dando banho, alimentando, elas estão se preparando para a maternidade, para cuidar de seus futuros filhos de carne e osso, que no futuro lhes darão netos e descendentes. Isso é compreensível e saudável.
Mas ver adultos brincando de alimentar e cuidar de “falsos bebês”, como se fossem filhos biológicos, traduz uma tentativa de superar um sentimento de frustração do exercício da maternidade. É como se elas estivessem sofrendo de uma profunda frustração por não poder exercer esse papel sonhado por toda mulher em um contexto seguro e saudável. Um companheiro violento, um relacionamento tóxico ou um marido problemático podem fazer da maternidade um ato de maus tratos e profunda solidão.
As circunstâncias da vida que as impediram de exercer a maternidade não destruíram o desejo profundo de dedicar tempo e amor a um ser frágil que depende dela.
Os filhos de uma geração que conviveram em um lar tóxico podem almejar o exercício da maternagem sem esses riscos e cuidarem desses “filhos de mentirinha”, que não têm nenhuma exigência de um lar de paz harmonioso e de uma família amorosa e acolhedora.
A relação saudável testemunhada por um filho, de ver o amor e a cooperação entre seus pais que o preparariam para construir sua futura família, parece estar dando lugar a investir numa relação estéril, sem “day after”. É como se uns se recusassem a reproduzir um modelo que gera infelicidade, orfandade e cria filhos estéreis de afeto, de vida e de futuro.
Reflete uma descrença e desilusão no futuro da família tradicional e do futuro da humanidade. Uma mãe, Suíça, me confidenciou que um de seus filhos mais brilhantes e saudável, com a idade de 22 anos, após a perda do pai, decidiu praticar suicídio e deixou por escrito os motivos de sua morte. “Neste mundo consumista, competitivo e acelerado, não me interessa viver. Espero que a senhora compreenda e aceite minha decisão.”
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Eventos marcantes, como a perda de um familiar, o fim de um relacionamento, podem desencadear questionamentos profundos sobre o sentido da vida. Esses momentos de transição geram frequentemente o sentimento de vazio.
Nos fala também da relação marido/mulher problemática, onde os feminicídios têm crescido muito em nossas sociedades. No feminicídio, o marido elimina, mata fisicamente a esposa, a mãe de seus filhos e sendo mãe de mentirinha, a mulher mata simbolicamente o pai de seu filho. Cria e cuida de uma criança, de um ser inerte, criado por uma fábrica de brinquedos, uma verdadeira obra de arte, dando-lhe vida e propósito para a vida de uma mãe solitária e sem compromisso com o futuro de sua linhagem e do gênero humano.
Enquanto as mães geram seus filhos em seus úteros, esses “bebês de mentirinha” são concebidos e nutridos por um imaginário fértil de indivíduos privados ou impossibilitados de exercerem no domínio da realidade uma função de realização, troca de afeto saudável e procriação. Essas “crianças de mentirinha” são estéreis, não geram vidas e sim são objetos de consumo descartáveis, dão uma razão para viver, pessoas que padecem de um vazio afetivo e existencial.
Os pais de mentirinha podem ser de qualquer gênero, e depende das preferências pessoais de cada um. No entanto, culturalmente, as mulheres têm uma presença maior nesse tipo de interesse. Numa análise psicológica, o interesse por “bebês de mentirinha” pode refletir uma necessidade intrínseca de cuidado, afeto e conexão emocional.
Para algumas pessoas, esses bebês representam uma oportunidade de exercer a paternidade/maternidade de forma simbólica, especialmente em contextos em que a maternidade ou paternidade real não é, ou não foi possível, ser vivenciada satisfatoriamente. O desejo de criar vínculos de afeto os leva a investir em relacionamentos que não são exigentes, e nem cobram nada.
Ou seja, “o cachimbo é o mesmo, o que muda é o tabaco, o fumo”. Essa metáfora indica que, independentemente das mudanças superficiais (como o “tabaco”), a essência ou a situação principal (o “cachimbo”) permanece a mesma. Ou seja, as aparências podem mudar, mas a essência das coisas não. A dificuldade material/relacional não destrói o espírito materno de dar amor e cuidar.
São pessoas em busca de estabilidade emocional. Em momentos de solidão, ansiedade ou luto, os “bebês de mentirinha” podem atuar como objetos de consolação, proporcionando sensação de companhia, segurança e propósito de vida. Esses “bebês fakes” também podem simbolizar sonhos de maternidade ou paternidade, representando um ideal de cuidado e amor incondicional.
Do mesmo jeito que se pede a Deus e aos santos o que não recebemos dos governantes, aqueles que vivem condições tóxicas e relações inseguras transferem o desejo de maternidade para objetos inanimados.
Dedicar tempo, afeto e amor a um “bibelô” tão verdadeiro como as “fake news”, nos transporta para um mundo de ilusões, nos alienando de uma realidade dura de se conviver.
Numa perspectiva sociológica, revela um contexto de mudanças de modelos familiares e sociais. Nas sociedades contemporâneas, onde a estrutura familiar tradicional sofre transformações (divórcios, aumento de pessoas solteiras, infertilidade social ou médica), os “bebês reborn” podem preencher uma lacuna emocional, oferecendo uma forma de conexão com o papel de cuidador ou de família.
A Cultura de consumo e estética, tenta preencher um vazio deixado pelas dificuldades de estabelecer a expressão de cuidados. A valorização estética e a busca por objetos de colecionismo de alta qualidade refletem a influência da cultura de consumo e do valor atribuído à estética e ao artesanal.
Os “bebês reborn” transformaram-se em objetos de desejo, colecionáveis e obras de arte, refletindo uma sociedade que valoriza a personalização e o exclusivismo. E investir num afeto que não decepciona e nem frustra.
Em sociedades onde há forte pressão para cumprir papéis tradicionais de cuidado, os “bebês reborn” podem atuar como um símbolo de realização ou uma alternativa simbólica à experiência real de maternidade, ou paternidade, especialmente para aqueles que enfrentam dificuldades nesse processo.
A prática de colecionar ou criar “bebês de mentirinha” pode fortalecer o senso de identidade de uma pessoa como cuidadora, artista ou colecionador, além de proporcionar um sentimento de pertencimento a uma comunidade de entusiastas.
Para alguns, esses objetos representam uma forma de resistência às mudanças sociais ou uma adaptação às novas configurações familiares, permitindo explorar diferentes aspectos de identidade e de experiências de cuidado.
Veja o fenômeno de pessoas que se identificam visualmente com seus ídolos podem ser classificadas como fãs ou imitadores, usando roupas, estilos e atitudes semelhantes para expressar admiração, fortalecer seu senso de pertencimento e refletir aspirações pessoais!
O fenômeno dos “bebês de mentirinha” pode ser entendido como uma expressão complexa das emoções humanas e das dinâmicas sociais contemporâneas. Ele reflete a busca por conexão emocional, o desejo de cuidado, além de responder às transformações na estrutura familiar, às pressões sociais e à cultura de consumo.
Esses objetos funcionam tanto como manifestações internas de necessidades psicológicas quanto como símbolos culturais de valores, expectativas e identidade social.
Enfim, cada indivíduo que adota um “falso bebê” é motivado por uma diversidade de razões. Algumas pessoas procuram nesses “bebês” uma maneira de expressar seu desejo de cuidar e proteger, especialmente se não podem ter filhos ou sentir uma conexão emocional com a ideia de ser mãe, ou pai.
Para outras pessoas, ter um “bebê reborn” pode ser uma maneira de gerenciar sentimentos de solidão, ansiedade ou perda, proporcionando uma sensação de companheirismo e propósito.
Outros, ainda, podem ser atraídos pela criatividade e arte envolvidas na fabricação e personalização dessas bonecas, apreciando sua beleza e realismo. Algumas pessoas gostam do processo artístico de criar ou colecionar esses bebês, enquanto outras encontram conforto emocional nelas.
Não há uma explicação única e cada experiência é única. A maioria das pessoas que gosta de “bebês de mentirinha” não enfrenta sérios problemas psicológicos. No entanto, nos casos em que o interesse por essas bonecas se torna obsessivo ou causa desconforto social, pode ser útil explorar essas emoções com ajuda profissional.
Para muitas pessoas, os “bebês de mentirinha”, representam um vínculo simbólico com a maternidade ou paternidade, especialmente nos casos em que não puderam ter filhos biológicos. Esta pode ser uma forma de satisfazer essa necessidade de cuidado e amor.
O interesse em ressuscitar bebês que nunca existiram pode estar enraizado em necessidades emocionais, criativas ou terapêuticas. Do ponto de vista psicológico, eles refletem aspectos da subjetividade e das experiências de cada indivíduo e geralmente não são motivo de preocupação, a menos que afetem o bem-estar geral.
O que seria preocupante era se a grande maioria dos indivíduos substituísse criar seus próprios filhos por esses bebês de mentirinha, porque comprometeria o futuro do gênero humano.
*Este texto reflete exclusivamente a opinião do autor.