Imagine desviar do esgoto correndo em valas improvisadas no meio da rua ou conviver com o incômodo da proliferação dos mosquitos e o mau cheiro intenso que não deixam a moradia ser lar. O cenário não é da década de 1980. Em 2024, nem metade da população cearense tem acesso ao esgotamento sanitário.

Conforme o Governo do Estado, com base no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), o índice de cobertura de água – incluindo municípios não pactuados com a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) – chega a 98,54%. O índice do esgoto, contudo, está em 48,67%.

Isso precisa deixar de ser realidade tão extrema em uma década com a aprovação do Marco Legal do Saneamento que determina metas para a universalização dos serviços. Até o final de 2033, 99% da população brasileira deverá ter acesso à água tratada, e 90% à coleta e tratamento do esgoto. 

$image.meta.caption
$image.meta.caption
Legenda: Fossas ainda são alternativa mais usada pela população cearense
Foto: Davi Rocha

Essa mudança é possível? Quem lê essa reportagem deve se questionar sobre a viabilidade disso, afinal, a demanda é gigante diante do tempo estabelecido. Por isso, consultamos especialistas e autoridades para entender os principais desafios e os exemplos bem sucedidos de universalização.

Esta é a terceira reportagem da série Rede Vital na qual o Diário do Nordeste aborda os atrasos e prejuízos cotidianos que a falta de esgotamento sanitário – uma amostra ainda real da desigualdade – causa para a Educação, Saúde e Meio Ambiente.

Selo

A principal estratégia do Ceará acontece por meio de uma Parceria Público-Privada entre a Cagece e a empresa Ambiental Ceará em 24 municípios do Estado. A ideia é garantir, da Região do Cariri ao Litoral, que o serviço de coleta e tratamento de esgoto chegue a 90% da população até 2033, avançando para 95% em 2040.

A empresa é responsável pelos serviços de coleta, afastamento e tratamento de esgoto nas cidades contempladas com R$ 6,2 bilhões investidos para as obras de infraestrutura de esgoto. Com isso, mais de 4 milhões de pessoas serão beneficiadas com o acesso à rede de esgoto.

Ao todo, serão construídas 27 Estações de Tratamento de Esgoto (ETE), 249 estações elevatórias e implantados mais de 4.000 km de novas redes de esgoto. Com a ampliação da infraestrutura, serão coletados e tratados, por mês, mais de 1 bilhão de litros de esgoto.

Veja também

Quais os principais desafios

As regiões Norte e Nordeste, historicamente, são menos beneficiadas com o acesso ao esgotamento, sendo o Sul e o Sudeste os mais contemplados, como analisa Suellen Galvão, coordenadora do curso de Gestão e Regulação do Saneamento na Unifor.

Entre os bons exemplos nacionais está Uberlândia, em Minas Gerais, que sempre aparece entre os 10 municípios com melhores índices de saneamento do País desde 2005, conforme os levantamentos feitos pelo Instituto Trata Brasil.

Campinas, em São Paulo, e Florianópolis, em Santa Catarina, também são destaques na alta cobertura de coleta e tratamento de esgoto. E o que esses lugares têm em comum?

"Eles têm em comum a decisão de Estado e não de governo de ampliar a rede e isso tem funcionado para diversas áreas, como Educação e Segurança", responde Suellen.

Trabalhar com saneamento não é algo barato, requer uma movimentação e logística e estrutural em qualquer cidade que gera diversos descontentamentos por parte da população durante esse processo de implantação
Suellen Galvão
Coordenadora do curso de Gestão e Regulação do Saneamento na Unifor

Fora do País, o uso de novos dispositivos para o controle e tratamento do esgoto também inspiram mudanças. "O Japão tem inovação tecnológica em saneamento, assim como a Dinamarca, Alemanha e o Chile, que é aqui pertinho da gente. São países com êxito nesse processo de transformação", completa.

Na análise de Suellen, convencer as pessoas começa por uma campanha de comunicação e “dizer apenas sobre proteger o meio ambiente não convence”. Para aumentar o engajamento popular, a educação ambiental deve atingir da periferia às áreas nobres.

"Como a gente pode deixar a população mais orientada para entender que existe a necessidade de ampliar o esgotamento sanitário? Quais os benefícios diretos por ter a rede apesar do transtorno?", conclui.

Os principais benefícios apontados pela especialista são:

  • Maior índice de desenvolvimento
  • Maior acesso à Educação e permanência
  • Maior produtividade no trabalho
  • Evitar sobrecarga no sistema de saúde

Por isso, Suellen considera urgente implementar os planejamentos estabelecidos para os municípios cearenses.

"O Ceará tem diversas frentes ambientais, somos vanguardas em vários instrumentos de legislação e de força política voltada para conservação e desenvolvimento do meio ambiente”, reflete.

Selo

Realidade cearense

André Facó, diretor-presidente da Ambiental Ceará, contextualiza que esse trabalho complexa começa na etapa de planejamento ao considerar a dinâmica de cada cidade para evitar transtornos à população, respeitando outras obras realizadas em paralelo. 

"Se eu tiver uma rua comercial, e a gente passar três meses realizando obras nesse lugar, podemos levar alguns negócios à falência. Então, temos de ter o planejamento alinhado com a característica daquela cidade ou região", frisa.

Outra dificuldade está ligada ao convencimento da população sobre a relevância da intervenção apesar dos incômodos gerados. “Esse é um grande desafio porque, culturalmente, a gente tem uma rejeição muito grande das pessoas se conectarem às redes já existentes", destaca André.

O gestor exemplifica que em Juazeiro do Norte, na Região do Cariri, há em torno de 40% de cobertura da rede de esgoto, mas apenas 20% das moradias estão devidamente conectadas.

“As demais jogam na sarjeta ou em fossas e não se percebe o problema de jogar isso no meio ambiente de maneira inadequada", destaca sobre a situação até em bairros com população de maior poder aquisitivo, como a Lagoa Seca.

O Cariri é o único local do Ceará que tem água subterrânea de qualidade, o Estado é 80% assentado num cristalino, em pedra. Tem água em qualidade e quantidade para abastecer as cidades e é o locais mais agredido com o lançamento de esgoto
André Facó
Diretor-presidente da Ambiental Ceará

Uma das principais alternativas para destinação do esgoto são as fossas, mas a estimativa de manutenção avaliada pela Ambiental Ceará é de que sejam necessários de R$ 300 a R$ 500 um ou duas vezes por ano. “Esse é um valor mais alto do que se pagassem a rede coletora, mas mesmo assim não enxergam valor."

Também por isso, André não acredita que a falta de capacidade de pagamento seja o único motivo para a ausência de conexão. “Na área da Beira-Mar, da Aldeota e do Meireles, existem vários imóveis que não jogam os esgotos na rede coletora mesmo em locais com maior poder aquisitivo", completa.

Selo

Rede ociosa

Se por um lado ainda existem ruas sem estrutura de esgotamento, em outras são os moradores que não aderem à rede.

O Artigo 78 do Código da Cidade – lei complementar que compõe o conjunto de regulamentos relacionados ao ambiente natural de Fortaleza – estabelece que todos os imóveis servidos por rede pública de esgoto liberada para uso deverão ser interligados à referida rede.

Ou seja, quem mora numa rua onde há estrutura de esgotamento sanitário precisa conectar à moradia sob pena de autuação pela infração grave. Caso o esgoto seja direcionado às galerias de águas pluviais ou a qualquer corpo d'água sem o devido tratamento, a infração é gravíssima.

Quem é responsável pelas ações de combate à poluição hídrica na capital cearense é a Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis).

“A partir de denúncias, equipes de fiscalização realizam a verificação dos imóveis que não estão interligados à rede pública de esgoto, bem como os imóveis que lançam efluentes de forma irregular na rede pública de esgoto e/ou nas galerias pluviais e recursos hídricos”, informou por meio de nota.

Luciano Arruda, diretor de Gestão de Parcerias da Cagece, estima que 120 mil moradias estão nessa situação em Fortaleza, “embora a rede passe na frente das casas”, como aponta. 

“Esse é um desafio que evidentemente é necessário que se faça um convencimento das famílias, logicamente há negócios, como comércios, escolas que estão dentre esses imóveis”, indica sobre a reversão do quadro.

Essas unidades estão jogando os dejetos no lençol freático e isso contamina e passa a ser um crime ambiental. Existe todo um esforço da Cagece no sentido de construir essa rede, mas hoje o gerenciamento e a operação é da Ambiental Ceará
Luciano Arruda
Diretor de Gestão de Parcerias da Cagece

O Diário do Nordeste acompanhou visitas feitas por agentes ligados à Ambiental Ceará para aumentar a adesão de famílias à rede de esgotamento no bairro Vicente Pinzon. Há uma dualidade entre famílias que aguardavam há anos pela instalação e outras que são resistentes.

– Moradora: Tá vindo deixar dinheiro pra nós?
– Agente: Bom dia! Vim saber se a casa já está ligada ao esgoto.
– Moradora: Não, é fossa mesmo. Estou desempregada, né?
– Agente: Viemos deixar uma mensagem de educação ambiental. O esgoto precisa ser tratado, é uma questão de saúde, até para as crianças não faltarem à escola.

Os agentes fazem os cadastros e enviam equipes para realizar a conexão das moradias à rede adequada arcando com os custos, inclusive, quando é necessária intervenção dentro da casa de famílias em situação de vulnerabilidade.

$image.meta.caption
$image.meta.caption
Legenda: Abordagens são feitas em diversos bairros da cidade para engajamento na rede de esgoto
Foto: Davi Rocha

Como acontece a ampliação

Questionado sobre os prejuízos para a população descoberta pelo saneamento básico e os avanços na rede, o Governo do Estado informou por meio de nota que tem avançado de forma contínua na cobertura por meio da Parceria Público-Privada (PPP) da Cagece com a empresa Ambiental Ceará.

“Está sendo executado um plano acelerado para cumprir com o Marco Legal e universalizar o serviço até 2033. O investimento nessa iniciativa alcança R$ 19 bilhões ao longo de 30 anos”, completou sobre os 24 municípios atendidos.

Desde maio de 2023, quando iniciou a operação, quase 100 mil imóveis ganharam condições de se conectar ao sistema de esgotamento sanitário devido à implantação de 162 km de novas redes de esgoto e revitalização do sistema.

Estratégias de convencimento são realizadas como um dos esforços para universalização do saneamento
Legenda: Ampliação da rede de esgotamento sanitário em Guaiúba, na Grande Fortaleza
Foto: Esdras Nogueira/Divulgação/Ambiental Ceará

“Isso representa 290 mil pessoas que passaram a ter acesso a todos os benefícios relacionados à coleta e ao tratamento adequado do esgoto. Desde o início de 2024, o índice de cobertura já avançou mais de 3 pontos percentuais”, destacou a gestão estadual.

“Além dos municípios atendidos pela PPP, a Cagece atua diretamente na universalização do esgotamento sanitário das demais cidades. Em fevereiro de 2024, Guaramiranga se tornou o primeiro município com cobertura universalizada pela Cagece”, acrescentou.

O município de Crateús e a localidade de Preá, em Cruz, são outros pontos de trabalhos em andamento para assegurar que pelo menos 90% dos imóveis estejam ligados à rede, conforme o Governo do Estado informou.

Monitoramento da rede

Uma das estruturas principais para monitorar a rede de esgotamento sanitário no Ceará é o Centro de Operações Integradas (COI), em Fortaleza. Por lá, cerca de 20 profissionais atuam divididos entre equipes de eficiência energética, eletromecânica, por exemplo. Mas, para o funcionamento da rede, mais de 3 mil pessoas atuam direta ou indiretamente.

“A gente chama de o cérebro da empresa porque é onde todas as informações convergem para que a gente possa dar essa velocidade e tem pilares de suporte, como a automação para operar em tempo real”, avalia Fernando Lima, diretor executivo da Ambiental Ceará.

Um painel extenso exibe todas as informações em abas diferentes para a equipe atenta ao que está acontecendo em Fortaleza e nas demais cidades atendidas pela PPP. Ao todo são mais de 500 ativos (como são chamadas as estruturas monitoradas), sendo 246 já automatizados, na cidade.

“A automação tem um papel de, imediatamente, quando ocorre algum tipo de falha isso é comunicado ao COI e é feita alguma tratativa”, detalha. Um exemplo de falha é a queda de energia, quando geradores podem ser utilizados.

O principal objetivo é resolver o problema antes de o cliente perceber, porque o saneamento é uma coisa que só incomoda quando falta, né? Se o esgoto está extravasando na rua, o cliente vai perceber que aquilo é um problema
Fernando Lima
Diretor executivo da Ambiental Ceará

Outro exemplo de problema evitado no cotidiano é o transbordamento de esgoto próximo ao mar. “Se tiver um extravasamento de esgoto e transbordar, caindo na praia, é um risco muito alto. Então, temos um controle de nível do poço de visita que, à medida que começa a subir o nível, gera um alarme”, detalha.

O uso da tecnologia nos processos de controle e tratamento do esgotamento sanitário teve maior avanço no período recente, como observa Fernando.

“O saneamento, historicamente, é uma infraestrutura que tem muitas tecnologias antigas. Então, a provocação é sempre de como a gente muda o setor, que vem se aperfeiçoando de duas décadas para cá de forma mais intensa”, completa.

Algumas das tecnologias usadas no COI

  • Dispositivos de controle nos poços de visita
  • Drones
  • Gêmeos digitais
  • Valetadeira
  • Frotas para monitoramento dos veículos
  • Câmera de segurança com inteligência artificial

O COI também monitora as condições de tempo como um aspecto relevante de prevenção, como explica Adriana Cardoso, coordenadora de eficiência e tecnologia na Ambiental Ceará.

“A gente acompanha o clima porque as chuvas impactam muito o sistema. Teoricamente não deveria ser assim, mas vimos que o sistema sofre muito pelo aumento de vazão e nível quando chove”, destaca. A partir da previsão do tempo pode ser feita, por exemplo, a verificação do gradeamento – a primeira fase do recebimento do esgoto na estação.

As intervenções são feitas pelos operadores distribuídos pelas cidades e também monitoradas em tempo real. Isso é feito para que a equipe mais próxima do local seja deslocada e atenda a demanda em menor tempo.

$alt
$alt
$alt
Legenda: Equipe faz controle em tempo real do sistema de esgotamento sanitário em 24 municípios
Foto: Davi Rocha

“Eles leem o QR-Code da estação e já tem um check-list das ações que precisam fazer, porque a gente tem um sistema que é utilizado para fazer um acompanhamento da operação, temos o cadastro”, acrescenta Adriana.

A partir disso, podem ser feitos serviços como verificação de bombas e limpeza de sensores de nível. “Geralmente, são demandas de eletromecânica, geram uma ordem de serviço e vamos acompanhando por aqui”, finaliza.