Por que 26 mil moradias do CE ainda lançam esgoto no mar, rios e lagos?
São quase 600 km de litoral, além de inúmeros lugares de água doce, onde há lazer, sobrevivência para pescadores e morada de uma rica biodiversidade no Ceará. Oposto à beleza natural, dejetos de 26.318 residências são lançados em rio, lago ou mar, sendo 12 mil só na Capital, como uma ameaça que se espraia por todo o Estado.
Os dados de domicílios ocupados estão retratados no Censo Demográfico 2022, produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados neste ano. O cenário resulta na piora da qualidade da água do mar, extinção local de espécies e prejuízos para negócios no mar, por exemplo.
Os motivos para o despejo irregular de esgoto em recursos hídricos são múltiplos e vão desde a falta de infraestrutura de esgoto, vulnerabilidade socioeconômica, até quem não quer pagar a taxa de esgoto.
Esta é a segunda reportagem da série Rede Vital, na qual o Diário do Nordeste aborda os atrasos e prejuízos cotidianos que a falta de esgotamento sanitário – uma amostra ainda real da desigualdade – causa para a Educação, Saúde e Meio Ambiente.
Michael Viana, doutor em Saneamento Ambiental e professor no Instituto de Ciências do Mar (Labomar) na Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que o esgoto pode chegar ao oceano sendo lançado diretamente na praia ou por meio dos rios que chegam até ao mar.
“Muito desse esgoto bruto acaba findando no ecossistema marinho e as praias são a porta de entrada desse material que chega de forma direta ou indireta pelos rios”, detalha. A partir daí há dispersão de três tipos de impurezas: químicas, físicas e microbiológicas.
Em relação ao impacto microbiológico, há uma série de microorganismos patogênicos, causadores de doenças que comprometem o banho de mar. A água do mar contaminada pode causar doenças do trato gastrointestinal com casos de diarreias agudas, por exemplo.
“Somado a isso, tem a questão da dinâmica marinha: se a dispersão é menor, naturalmente os microorganismos vão ficar em maiores concentrações e comprometem a balneabilidade”, alerta Michael.
Esse padrão é baseado na Resolução Nº 274 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e estabelece que a qualidade da água passa a ser satisfatória: “quando em 80% ou mais de um conjunto de amostras obtidas em cada uma das cinco semanas anteriores, colhidas no mesmo local, houver, no máximo 1.000 coliformes fecais (termotolerantes) ou 800 Escherichia coli ou 100 enterococos por 100 mililitros”.
A situação piora em regiões com menor cobertura de esgotamento sanitário e a concentração de poluentes pode ser maior conforme as características de cada praia.
Um outro fator são as regiões oceânicas mais abrigadas, por exemplo, a enseada do Mucuripe que, por natureza, proporciona maior acúmulo das impurezas lançadas na região porque a água circula menos do que numa praia aberta
As águas mais paradas, como de açudes, são ainda mais vulneráveis e com a alta concentração de matéria orgânica sem tratamento adequado de esgoto a tendência é que falte oxigênio para peixes e outros animais que vivem submersos.
“Isso acontece porque os microorganismos decompositores que estão na própria água e até no esgoto começam o processo de decomposição da matéria orgânica e maior vai ser o consumo de oxigênio por esses microorganismos. Naturalmente, vai faltar para outros”, frisa Michael.
Risco para a biodiversidade
Quando o esgoto não tratado chega ao mar, os prejuízos afetam desde animais maiores até aos corais, como explica Marcelo Soares, professor e pesquisador do Labomar.
“Para botos, golfinhos e tartarugas é um vetor de doenças que muitas vezes causam óbitos devido ao esgoto não tratado. Também causa problemas em outras espécies de diferentes formas e tem a perda de biodiversidade com a eliminação local de algumas”, contextualiza.
Algumas pesquisas produzidas no Labomar, como acrescenta o especialista, indicam que há uma menor riqueza de biodiversidade em Fortaleza em comparação com áreas mais distantes, a exemplo do Paracuru e Flecheiras.
"Uma das principais questões que precisam ser trabalhadas são os rios que são grandes poluidores por receber essa descarga de esgoto que vão pro mar. Dá para instalar ecobarreiras para diminuir o esgoto e o lixo”, propõe Marcelo.
André Facó, diretor-presidente da Ambiental Ceará – empresa responsável por responsável pelos serviços de coleta, afastamento e tratamento de esgoto em 24 municípios cearenses –, alerta que a maioria dos 157 açudes monitorados pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) precisa de atenção.
“Algo em torno de 67% desses açudes estão no processo avançado de eutrofização, que é o crescimento acentuado de algas", destaca sobre fontes de água para abastecimento das cidades cearenses.
André acrescenta que o calor do Sol também contribui para um ambiente propício à “explosão” de algas nos reservatórios.
“Isso pode causar desde a mortandade de peixes até problemas de não utilizar o açude para abastecimento humano porque algumas algas podem gerar sérios problemas à saúde da população e o processo de tratamento é muito caro", indica André.
"O plástico está dentro do esgoto, dentro da galeria de drenagem e tudo isso de alguma maneira chega no mar. E aí tem um processo de poluição e, em determinados momentos, de contaminação que vai causar um prejuízo tremendo para o meio ambiente".
Prejuízos para os negócios
O movimento das ondas no Ceará atrai milhares de pessoas em busca de aproveitar o ambiente natural, o que fomenta os negócios existentes e a criação de novas fontes de renda para famílias no litoral.
“Se eu não tenho uma praia bem cuidada ou com problemas de balneabilidade, com muito esgoto, ela vai ser menos visitada e isso vai impactar as barracas de praia, os comércios e até hoteis e pousadas que têm a diminuição de reservas por causa da poluição”, contextualiza o pesquisador Marcelo Soares.
O saneamento básico é um ponto crucial para a questão do turismo e o desenvolvimento da zona costeira, porque quanto mais degradado o ambiente menos recursos econômicos e atividades socioeconômicos vão haver naquela região.
Há uma vida inteira, Alberto de Souza, 65, conhece a realidade de quem tira o sustento das águas do encontro do Rio Cocó com o mar, na Barra do Ceará, em Fortaleza. “Esse rio deu tanta coisa para mim, criei minha família aqui, é a minha vida”, resume.
Já são mais de 30 anos à frente do Albertu’s Restaurante, negócio criado pelo pai de Alberto que criou um dos mais tradicionais negócios da orla há seis décadas. Do período, reconhece avanços e desafios que permanecem.
“Tinha um problema grave dos barraqueiros de antigamente em relação ao esgoto e foram feitos novos quiosques com saneamento, mas ficaram algumas galerias pluviais que as pessoas jogam esgoto dentro”, compartilha sobre as observações cotidianas.
Isso atrapalha a movimentação de consumidores em períodos de maior acúmulo do lixo e a quadra chuvosa – entre fevereiro e maio no Ceará – costuma ser o momento de maior problema para quem trabalha no local.
“A água doce vem trazendo tudo, coloca tudo no mar e, devido a isso, a água fica muito turva. A gente não toma banho nessa época, porque o banho gostoso é quando o mar tá enchendo pra limpar a água”, avalia Alberto.
O restaurante de Alberto foi transformado num Museu Orgânico, com exposições históricas do Bairro, além de atividades de educação ambiental que avançam pelo mangue – exceto quando a sujeira não permite.
“Quando a maré vaza, o esgoto vem aqui para a foz do rio e fica o mau cheiro. A gente vê muitas galerias nessa área belíssima e é importante uma ação com urgência. Não dá para em pleno em 2024 a gente reivindicar para não ser tão afetado por isso”
Essa é uma pauta que devia ser batida sempre, e exige muita conscientização, isso teria que envolver até o Ministério da Educação para ser debatido na escola para que uma geração vá se conscientizando
O que os especialistas avaliam sobre a diminuição das espécies, Alberto observa na prática. “Isso aqui era uma coisa linda, o morro caindo dentro da água, as tartarugas que desovavam em cima do morro, a gente vinha muito cavalo marinho, muitas espécies de peixes que tem sumido – apesar de ser muito bom ainda”, pondera.
Sobre a situação da Barra do Ceará, a Ambiental Ceará informou por meio de nota que o bairro possui parte do território dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) do Estuário do Rio Ceará com investimentos em infraestrutura de esgotamento desde a década de 1990. A cobertura atual da rede coletora no território está em 96,43%.
Ainda assim, quase 6 mil moradias despejam esgoto de forma inadequada. “Dentro desse cenário, 19,3 mil imóveis estão conectados à rede, mas ainda há uma parcela considerável de imóveis com infraestrutura disponível, destinando esgoto de forma irregular: cerca de 5,7 mil”, detalhou.
São feitas visitas porta a porta na Barra do Ceará, além de outros bairros, para informar aos moradores sobre a disponibilidade da rede de esgoto. O bairro possui uma Estação Elevatória de Esgoto (EEE), monitorada em tempo real, responsável pelo encaminhamento dos efluentes até o destino final, a Estação de Pré-Condicionamento de Esgoto (EPC), da Avenida Leste Oeste.
Para solicitar ligação à rede de esgoto, os moradores devem entrar em contato com a Cagece por meio dos canais de atendimento: aplicativo Cagece App (disponível para Android e iOS) ou por meio da Gesse, assistente virtual que atende no portal da companhia (www.cagece.com.br), além da Central de Atendimento (0800 275 0195).
Monitoramento
A Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) realiza monitoramento constante da qualidade da água das praias do Ceará e de 95 pontos de rios no Estado. Na capital cearense, boletins semanais são realizados em 33 pontos do litoral. Já nas demais localidades, os relatórios são mensais. Nos rios, o controle é trimestral.
“Temos indicadores diferentes. No monitoramento das praias, a gente utiliza indicador bacteriológico e nos rios usamos parâmetros bacteriológicos e físico-químicos”, explica Lincoln Davi, diretor de Controle e Proteção Ambiental da Semace.
Em geral, a qualidade da água cai na quadra chuvosa por causa do lixo e do esgoto descartados de forma inadequada.
“Existe um padrão histórico: a gente observa que no período chuvoso a gente tem um maior número de pontos impróprios para banho em função de que a chuva acaba carreando uma grande quantidade de lixo, esgoto e outros detritos que chegam ao mar”, frisa.
A boa notícia é que todos os ecossistemas têm um poder de resiliência e, toda vez que ele é perturbado, tende a neutralizar aquilo de maneira a voltar ao seu estado natural. Isso explica porque uma praia está imprópria numa semana e na outra está própria
O problema se concentra em alguns pontos da cidade, como a Barra do Ceará, com relação ao despejo de esgoto. “O setor leste e o centro têm mais pontos próprios para banho do que o setor oeste devido a ligações clandestinas”, completa.
As demais praias do Estado permanecem próprias para banho durante todo o período do ano, salvo alguma exceção por um evento isolado, como explica, "porque não tem essa aglomeração urbana bem perto da praia".
O ambiente natural tem uma forte capacidade de se restaurar, principalmente, com apoio da população.
O que é feito
Fernando Lima, diretor executivo da Ambiental Ceará, indica que há um esforço conjunto para cumprimento da legislação ambiental no fluxo de coleta, estação de tratamento e devolução ao meio ambiente sem prejuízo.
“Existe todo um cuidado além do habitual para evitar extravasamentos. No período de chuva, é natural a gente instalar geradores adicionais para criar contingências estratégicas”, completa sobre as atividades específicas para o mar.
“O cuidado principal é criar proteções adicionais porque isso gera impacto no turismo, ambiental e para a população no entorno”, lista. Para Fernando, o foco da equipe é ter a capacidade de dar respostas rápidas, por exemplo, em casos de extravasamento.
“Nas estações elevatórias, temos uma série de gradeamentos que é para tirar o máximo possível, da areia ao plástico”, conclui.