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Moradora do Parque São José, na periferia de Fortaleza, a dona de casa Betânia Melo de Sousa pega quentinhas todos os dias num projeto social para alimentar a si e aos três filhos: Lara Vitória, Arthur Brayan e Victor Rafael, de 5, 4 e 7 anos, respectivamente. Se não houvesse refeição completa, seria o básico do dia a dia: feijão, arroz, mortadela ou salsicha. Não é por querer: é o que dá pra pagar.

“Não consigo comprar frutas porque é caro, nem toda vida a gente tem o dinheiro”, assume a beneficiária do Programa Ceará Sem Fome. Assim, até a introdução alimentar dos pequenos a produtos mais saudáveis fica comprometida. O que eles gostam mesmo está cheio de aditivos químicos, como xilitos e doces. O alívio da mãe é que, pelo menos das marmitas, eles comem tudo.

Nos últimos meses, o Diário do Nordeste visitou quatro cidades do Estado para conhecer o trabalho de profissionais envolvidos no combate à fome e a recepção dos beneficiários. Assim, servimos o especial “Ceará: Comer e Curar”, que mostra os sabores e desafios do combate à insegurança alimentar e seus impactos em áreas como saúde, economia e educação.

Legenda: Beneficiária do Programa Ceará Sem Fome, Betânia Melo viu alimentação dos filhos melhorar
Foto: Thiago Gadelha

A situação adversa se repete na casa de Karyne da Costa Martins, 33, moradora do bairro Floresta. Ela recebe o Bolsa Família e também está cadastrada para buscar marmitas fornecidas pelo Governo do Estado, que alimentam ela e os três filhos. “Quando não tem, a gente sente falta. Aqui e acolá eu compro um arroz pra comer com mortadela. É o que dá pra comprar. É o que eu consigo dar pra eles”, admite.

A boa nutrição é uma etapa essencial para crianças. Márcia Machado, cientista-chefe de Proteção Social do Ceará e professora do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que uma criança que não recebe todos os nutrientes dos quais precisa para se desenvolver vai ter, “no mínimo, anemia”. Com isso, está sujeita a:

  • apatia e sonolência
  • irritação ou choro frequente
  • maior possibilidade de pegar infecções paralelas pela baixa imunidade
  • problemas respiratórios, gastrointestinais e de pele
  • dificuldades de desenvolvimento
  • alteração nos padrões de saúde mental
  • rendimento escolar abaixo do esperado
  • problemas de socialização

“Passar fome tem repercussões na vida toda, e socialmente também”, ressalta ela, citando os benefícios trazidos por programas de transferência de renda ao longo das últimas duas décadas. “As crianças saíram do quadro crônico que tínhamos há 30 anos atrás, de quase 45% de prevalência de desnutrição, não tem o que contestar. Hoje, não chega a 5,5%”. 

Na análise dos dados por região de 106 mil famílias cearenses assistidas pelo Estado, ela notou que há maior proporção de famílias em insegurança alimentar grave na Grande Fortaleza, seguida pelo Maciço de Baturité e Centro-Sul. Por outro lado, a melhor redução ocorreu na Ibiapaba, nos Sertões de Canindé e dos Inhamuns e no Litoral Norte. 

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Ainda assim, aponta Márcia, a população que vive em extrema miséria é a de maior risco para insegurança alimentar. E não mais por falta de alimentos, mas pela qualidade deles. “Começamos a ver nessa população um aumento de sobrepeso e de obesidade. Ficamos preocupados de ver o quanto as crianças estão comendo ultraprocessados e comidas hipercalóricas”, aponta.

Dados nacionais corroboram a observação. Segundo o Sistema Nacional de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), em fevereiro de 2024, uma em cada dez crianças cearenses (9,64%) de até 5 anos de idade apresentava “peso elevado para a idade”. Na faixa de 5 a 10 anos, o percentual subiu para 18%. Para a análise, o relatório analisou a relação peso x idade de 72 mil indivíduos e, nos dois casos, os índices ficaram acima das médias do Nordeste e do País.

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Legenda: Karyne Martins, 33, moradora do bairro Floresta, pega marmita para ela e os três filhos
Foto: Fabiane de Paula

Realidade indigesta

O coordenador de Ações Sociais do Instituto da Primeira Infância (Iprede), João Furtado, reforça que não adianta mais pensar apenas na desnutrição, mas no desenvolvimento geral. Para ele, a desnutrição é um catalisador do problema, ao lado da falta de condições sanitárias e cuidados. 

“Uma criança vulnerável vai ser muito mais exposta à violência e ao abandono, e isso transcende o próprio alimento. Para combater isso, não podemos só dar o prato de comida, mas um arcabouço terapêutico e de atenção para que consigamos protegê-la e fazer com que tenha um desenvolvimento adequado”, recomenda.

Existe uma desnutrição não só de nutrientes, mas de possibilidades, acima de qualquer coisa. Isso afeta não só a primeira infância, mas toda a estrutura familiar daquela criança.
João Furtado
Coordenador no Iprede

Apesar dos avanços nas políticas públicas, o coordenador entende que o agravamento de problemas durante a pandemia ainda não foi totalmente revertido. Segundo ele, o Iprede voltou a um cenário visto na fundação da entidade, na década de 1980: de pessoas pedindo comida pronta. “O obstáculo social não foi superado, foi esquecido. Dentro de uma ótica de vulnerabilidade, de falta de emprego, de setores ainda buscando oxigênio para se reerguer, isso é amplificado”, entende.

Hoje, cerca de 4 mil crianças e suas famílias são atendidas pela instituição, que também criou o projeto “Prato Cheio” e, por meio dele, distribui milhares de litros de sopa para 13 comunidades em parceria com redes de supermercados.

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Legenda: Falta de nutrição pode comprometer o aprendizado e desenvolvimento infantil
Foto: Thiago Gadelha

Cuidado com as mães

Os problemas nutricionais também podem ser hereditários: crianças nascidas de mães desnutridas podem começar a vida com baixo peso e deficiências nutricionais oriundas do período de gestação. “A mãe, muitas vezes, também está desnutrida e não consegue amamentar”, afirma João Furtado. Por isso, os profissionais da área já entenderam que não adianta cuidar só da criança. 

Na pesquisa que estamos fazendo, cerca de 70% das mães têm sobrepeso ou obesidade - e a criança é reprodutora daquilo que os pais fazem. Se a mãe come hipercalóricos, as crianças também vão. 
Márcia Machado
Cientista-Chefe de Proteção Social

“Hoje, nosso atendimento é da estrutura familiar, em um trabalho paralelo. A criança pode chegar a um momento que tem alta, atinge os padrões adequados, mas volta para uma casa desestruturada, passa fome, e acaba precisando voltar para cá em déficit de desenvolvimento”, aponta o coordenador. “Fazemos um trabalho estrutural vinculado à mãe, para que a criança volte e sua casa esteja minimamente equipada para que se configure como saudável para o desenvolvimento infantil”.

A pesquisadora Márcia Machado também acredita que as mulheres mães podem ser “treinadas” a partir da experiência das cozinhas solidárias. “Ali, elas estão aprendendo a fazer alimentos saudáveis. É uma cadeia produtiva que melhora o padrão da família dela e pode, depois que tentarmos estimular, receber recursos para produzir alimento para vender. Esse é um ciclo intergeracional que, daqui a 10 ou 15 anos, a gente vê o efeito”. 

Mudança sistêmica

No entanto, a cientista-chefe ainda percebe uma série de temas que precisam ser tratados para garantir a soberania alimentar dessas famílias. Ela acredita que o grande exercício de saúde pública que precisa ser trabalhado, nos próximos 10 anos, é melhorar justamente a educação nutricional - e em vários níveis.

O primeiro é no domiciliar, incentivando formações com as famílias para envolver os pais de forma mais efetiva. Depois, expandindo para as equipes de nutrição de escolas e creches. “Se lá elas recebem alimentos pouco nutritivos, você não está fazendo um trabalho realmente preventivo que possa gerar impacto a longo prazo”, indica.

Legenda: Crianças que passam fome têm repercussões para a vida toda, alertam especialistas
Foto: Thiago Gadelha

Outros pontos de sensibilização deveriam ser as mercearias e pequenos comércios que vendem ultraprocessados em demasia, além do suporte a iniciativas de redução do consumo desse tipo de produto. 

“Já tem projetos a nível nacional para tentar taxar esses alimentos e ver se a gente reduz um pouco a compra. É muito líquido açucarado, em caixinhas, com corantes. Isso aumenta os processos alérgicos em algumas crianças”, ressalta Márcia.

E se engana quem pensa que o problema está apenas na área urbana: “famílias que moram em zona rural tendem  a comer ainda mais alimentos pouco nutritivos, porque esses alimentos são não perecíveis”.

“Temos que pensar na própria agricultura familiar, mas barateando os preços. Comer fruta é muito caro, principalmente sem agrotóxico. Mas não podemos partir de uma abordagem impositiva de dizer ‘pare de comer achocolatado e xilito e passe a comer frutas’. É uma cadeia de intervenções motivacionais e econômicas para encorajar as pessoas a mudar o habitus alimentar”, finaliza.