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Deu 9h30, é hora do recreio. A sirene indica a formação da fila da merenda na Escola de Ensino Médio em Tempo Integral (EEMTI) Deputado Paulo Benevides, em Messejana, Fortaleza, uma das 754 escolas da rede estadual do Ceará. Hoje, o cardápio é pão com carne moída e iogurte - mas também tem o dia do cuscuz, da torrada, da vitamina de banana. Alimentos que ajudam os estudantes a manterem o foco e, em paralelo, contribuem para a redução da evasão escolar.

“Tem gente que não merenda antes de sair de casa e, comendo só bolacha, não tem ‘sustança’. Querendo ou não, estudar requer calorias”, resume Gabriel de Alencar, 16, matriculado no 2º ano. “É bom saber que a gente tem a segurança de vir pra escola e saber que vai ser alimentado para conseguir estudar direito”, complementa Maria Gabriely, 16, do 3º ano.

Nos últimos meses, o Diário do Nordeste visitou quatro cidades do Estado para conhecer o trabalho de profissionais envolvidos no combate à fome e a recepção dos beneficiários. Assim, servimos o especial “Ceará: Comer e Curar”, que mostra os sabores e desafios do combate à insegurança alimentar e seus impactos em áreas como saúde, economia e educação.

Entre conversas e risadas, o intervalo para a alimentação não é apenas um momento de descontração e sociabilidade, mas uma garantia para alunos em vulnerabilidade social. O tema não é tratado em voz alta, talvez por medo da vergonha, mas os alunos ouvidos pela reportagem sabem que outros colegas não têm o que comer em casa. 

“Tem casos de pessoas que moram em ambientes próximos ao meu que vêm pra cá pra poder ter alimentação. A única refeição que fazem no dia é a ofertada na escola”, já constatou Mateus Erislan, 17, também do 3º ano. Para ele, a alimentação balanceada e a oferta de “mimos” - como chama as sobremesas como frutas e goiabada - dão ânimo para ir à escola e evitar faltas.

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A diretora da unidade, Socorro Lima, tenta conscientizar os estudantes sobre o desperdício de alimentos porque essa realidade não está distante. Ela mesma, quando jovem e aluna de periferia, confessa ter passado por maus bocados porque não tinha comida na escola que frequentava - uma realidade que continuou acompanhando ao longo da carreira profissional.

“Em outra escola, tinha uma aluna que ficava muito triste toda vida que ia comer. Um dia, decidi sentar e conversar com ela. Ela respondeu: ‘fico assim porque sei que tô comendo bem, mas meus irmãos em casa não’. Para ela, aquele momento que ela precisava era, na verdade, uma tortura”, lamenta. 

Tem muita gente que não tem condições de comer o básico em casa, mas a refeição que a escola proporciona é extremamente rica tanto em fibras, como calorias e proteínas, que é um negócio muito importante para ter energia. É uma ajuda para os pais terem a certeza de que os filhos têm alimentação de qualidade na escola.
Michelle de Matos Araújo
Aluna do 3º ano

Escolha do cardápio

Só na escola Paulo Benevides, há cerca de 1.200 matriculados. Como a escola tem dois turnos de tempo integral - o primeiro de 7h às 14h e outro de 14h30 às 21h30 -, cada aluno tem direito a duas refeições, sendo um lanche e almoço ou jantar. Em nível estadual, segundo a Secretaria da Educação do Ceará (Seduc), são servidas diariamente 791.161 refeições por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), beneficiando 402.320 estudantes. 

Num processo participativo, os alunos podem contribuir ativamente com a escolha dos cardápios, que são validados por nutricionistas, “utilizando alimentos in natura ou minimamente processados, respeitando as necessidades nutricionais, os hábitos alimentares e a cultura alimentar da localidade”.

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Legenda: Oferta evita alimentos embutidos e ultraprocessados
Foto: Fabiane de Paula

Assim, saem das panelas carne acebolada, macarronada, creme de galinha e até feijoada, divididos em semanas de 1 a 4 por 200 dias letivos. A titular da Coordenadoria de Gestão da Alimentação Escolar (Coale) da Seduc, Evilauba Gonçalves, afirma que o planejamento segue todas as orientações definidas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). 

Além disso, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) determina que 30% do valor repassado pelo FNDE para a merenda deve ser utilizado na compra direta de produtos da agricultura familiar, sobretudo frutas, legumes e hortaliças. Atualmente, tramita no Senado o projeto de lei 212/2022, que aumenta esse percentual mínimo para 50%; o texto ainda será avaliado pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE).

“Em cada coordenadoria regional de educação, temos um profissional de nutrição. Trabalhamos muito apresentando o cardápio proposto e ouvindo os estudantes em suas regionais para nos adequarmos às necessidades deles”, explica Evilauba.

Há cardápios específicos para estudantes com restrições alimentares, como alergias, intolerâncias e diabetes. Até mesmo os vegetarianos e veganos entram nas discussões da Coale. “Para as condições de saúde, é exigido que o aluno apresente um diagnóstico para que a gente passe para a escola e transfira recursos para adquirir itens para ele. Nos demais casos, estamos trabalhando para oferecer alguns alimentos para suprir suas necessidades”. 

Eixo de conscientização

Outras decisões técnicas levaram à exclusão de alguns itens do cardápio, como achocolatados, segundo Evilauba. Em paralelo, as escolas buscam realizar ações de educação alimentar e nutricional, mostrando os tipos de alimentos mais nocivos à saúde. “Salsicha, linguiça e outros alimentos com muito sódio não fazem parte da rede estadual do Ceará”, garante.

A primeira-dama do Estado e coordenadora do Comitê Intersetorial do Programa Ceará Sem Fome, Lia de Freitas, afirma que um dos eixos futuros da iniciativa é fortalecer a educação alimentar nas escolas, partindo da premissa de que é através de crianças e adolescentes que os adultos também podem ser sensibilizados. Ela reconhece, contudo, os desafios para a implementação dessas medidas.

“Temos um Guia de Alimentação Nacional que não temos como cumprir, desde o carboidrato, a proteína, o legume. A pessoa opta pelo que o bolso consegue pagar para encher a barriga, seja com massa ou farinha. Já chegamos na parte de entregar comida, mas agora temos planos”, destaca. 

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Legenda: Hora da merenda é momento também de descontração e socialização
Foto: Fabiane de Paula

Evilauba Gonçalves reitera a importância da alimentação escolar não como assistencialismo, mas como um pilar para a aprendizagem, para a permanência dos alunos no ambiente de ensino e para a transformação de hábitos nas próprias famílias.

“A gente exige da escola que o cardápio ofertado seja visível à comunidade escolar, para que o aluno chegue em casa e diga do que tá se alimentando na escola. Mostramos que alimentação de qualidade é qualidade de vida, e quando ele faz isso, também leva pra casa o hábito alimentar. Não é só o que eu como, mas o que eu vivo e pratico”, considera.

Como é feito o repasse da merenda?

O repasse de recursos financeiros do FNDE para a Seduc é realizado com base no Censo Escolar do ano anterior, em conta-corrente, para atender exclusivamente às escolas da rede estadual. O Estado do Ceará complementa os recursos financeiros recebidos do Governo Federal para incrementar os cardápios.

A previsão (estimativa) de recursos para o Programa na rede estadual cearense, em 2024, é de R$74 milhões via FNDE e mais R$191,9 milhões por complementação estadual, divididos nas seguintes modalidades:

Nas redes municipais, o cenário se repete. Em Fortaleza, conforme a Secretaria Municipal de Educação (SME), são servidas cerca de 520 mil refeições diariamente, beneficiando mais de 259 mil alunos das modalidades normal e de contraturno escolar. 

Os cardápios escolares também são elaborados mensalmente com base nas necessidades nutricionais de cada faixa etária e na cultura alimentar local. Para a execução, 1,5 mil manipuladores atuam nas unidades escolares. “Todas as escolas da Rede são acompanhadas por nutricionistas, que monitoram não somente a qualidade da alimentação distribuída aos alunos, como também as boas práticas”, garante a Pasta.

Para 2024, a previsão de repasse do Pnae à rede municipal de Fortaleza é de R$53 milhões. A Prefeitura também faz o complemento com recursos municipais, investindo aproximadamente R$11 milhões a cada ano. O custo diário da alimentação “varia justamente da modalidade a ser atendida, que vai desde os berçários até os programas de jornada ampliada”.