TechPolítica: Como a inteligência artificial está sendo incorporada nas ações do Poder Público no CE
No Ceará, o Poder Público promove um processo de transformação digital em várias frentes, integrando a inteligência artificial (IA) em suas operações, tanto na prestação de serviços ao público quanto na modernização de processos internos realizados pelos servidores, promovendo ainda avanços em termos de eficiência e transparência.
Exemplos dessas incursões podem ser observados em órgãos públicos como o Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE), a Câmara Municipal de Fortaleza (CMFor), o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) e a Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA) do Estado do Ceará.
Todos eles foram abordados no TechPolítica, uma série audiovisual produzida pelo Diário do Nordeste, exibida no YouTube e na TV Diário entre os meses de outubro e novembro, que explorou a junção entre a tecnologia e a ação desses entes.
Os quatro lançaram programas com ferramentas baseadas em inteligência artificial para aprimorar desde a fiscalização de rodovias até a inclusão digital e econômica de comunidades rurais.
Esta reportagem especial apresenta um panorama sobre as principais experiências destes órgãos e, com o auxílio de especialistas, busca compreender quais tendências estão em curso no âmbito da inteligência artificial e quais são os desafios naturais a esse campo.
A IA e o TCE 5.0
A incorporação da inteligência artificial pelo Tribunal de Contas do Estado do Ceará está alinhada ao programa TCE 5.0, implementado pela Corte em 2024 para a modernização de processos, aumento da eficiência e transparência, e promoção de acessibilidade aos serviços públicos.
Há, no órgão, entre outras, iniciativas como o letramento em IA Generativa, engenharia de prompt por área, oferta de ferramentas como Gemini e NotebookLM para o corpo funcional, assim como para regulamentação do uso de inteligência artificial.
Uma das principais entregas foi o Medidor de Irregularidades e Defeitos em Rodovias (MIDR). Desenvolvido em parceria com a Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), o MIDR utiliza um algoritmo de IA para analisar vídeos de estradas.
Além do MIDR, que promove uma atuação mais preventiva do órgão, o TCE-CE utiliza outras aplicações de IA, como a Ana Júlia (Analista Jurídica Legal por Inteligência Artificial), que auxilia em consultas internas aos dados processuais e decisões; o Chat Diário Oficial do Estado, para acesso às informações do periódico; e a TricIA, que simplifica a interação com o Monitor Fiscal.
Segundo a secretária de Tecnologia da Informação do TCE-CE, Cairamir Arruda, a instituição do programa de transformação digital foi pensada para “levar conforto para os usuários, celeridade e qualidade”. “Para isso, a IA vem a agregar, é mais um instrumento para a gente poder embarcar em nossas soluções para levar esse ganho para os nossos usuários”, salientou.
O letramento e a criação de uma “cultura no uso de IA” foram passos iniciais nessa experiência do TCE, afirmou Cairamir, que resume o processo tocado pela Corte em uma lógica: “a transformação digital é a gente encontrar os processos, fazer com que esses processos sejam melhorados”.
MPCE+Digital
De maneira semelhante, o Ministério Público do Estado do Ceará abraçou a transformação digital por meio do programa “MPCE+Digital”. O intuito da política, de acordo com o parquet, é “aprimorar a atuação de membros e servidores em benefício da população cearense”.
O programa busca integrar o uso de inteligência e outras tecnologias, não somente desenvolvendo novas ferramentas, mas também incentivando o uso de plataformas já consolidadas no mercado, e promovendo capacitações contínuas para o público interno.
Assim foi desenvolvida uma assistente virtual própria para os processos do MP do Ceará, a OlimpIA. Além dela, foram criados os Sumarizadores e a OlimpIA Júri — esta última como um desdobramento para uma função específica da Promotoria.
As primeiras são ferramentas de IA que auxiliam na extração de informações relevantes de uma variedade de documentos legais, como relatórios, decisões judiciais e petições. Já a OlimpIA Júri está integrada à Copilot e foi desenvolvida pelo MP do Ceará como parte do projeto “Apoio ao Júri”. Sua especialidade é a análise de processos criminais, auxiliando na preparação e otimização da rotina de trabalho dos promotores.
Além de outras ferramentas próprias, foi criado no organograma do MP o Laboratório de Inovação do Ministério Público do Estado do Ceará, o Lino. Ele e a Secretaria de Tecnologia da Informação são nascedouros das soluções tecnológicas desenvolvidas para otimizar processos e serviços.
Ao que afirmou o Procurador-Geral de Justiça do Ceará, Haley de Carvalho, há “uma demanda sempre crescente” pelos serviços do Ministério Público e o uso das ferramentas favorece que o órgão “consiga dar uma resposta mais rápida e mais efetiva”.
Carvalho salientou que a utilização da inteligência artificial se dá como um apoio para o trabalho humano, sendo este o que irá ser decisório. “A gente nunca prescinde o trabalho do membro, promotor ou procurador”, descreveu.
Câmara de Fortaleza
A Câmara Municipal de Fortaleza também tem implementado soluções digitais para qualificar, auxiliar e otimizar o expediente e os serviços prestados à população. Essas iniciativas se enquadram nos eixos estratégicos da gestão atual e incluem a digitalização de processos.
Em maio, foi lançada a plataforma “CMFor 360”, que trouxe, entre outras inovações, a IA adaptada MaraIA. Ela é uma assistente virtual que tem a função de apresentar resumos e os principais pontos dos projetos em tempo real para vereadores, assessores parlamentares e servidores administrativos.
No âmbito dos serviços públicos, a Câmara utiliza robôs para o envio de notificações referentes à entrega de carteiras de identidade emitidas pela Central da Cidadania. O usuário que emite o documento no local recebe em seu celular a notificação quando a retirada for autorizada.
Para a promoção da acessibilidade, o portal da CMFor já utiliza a aplicação VLibras, que funciona por meio de IA. Através dela, as pessoas surdas podem acessar conteúdo multimídia, em computadores e dispositivos móveis, na sua língua natural de comunicação.
E, em breve, agentes inteligentes de atendimento por inteligência artificial devem auxiliar o agendamento de serviços pela Central da Cidadania por aplicativos de mensagens instantâneas. A tecnologia já é testada pela Coordenadoria de Informação e Dados da Casa Legislativa.
Segundo o presidente da Câmara de Fortaleza, o vereador Leo Couto (PSB), o “CMFor 306” nasceu da necessidade de suprir um “atraso” com relação à tecnologia e por meio de um intercâmbio com outras Casas Legislativas que já tocavam processos de digitalização.
“A gente precisava que a tecnologia, que está em todos os lares brasileiros, principalmente depois da pandemia, trabalhasse ao nosso favor”, falou o chefe do Legislativo municipal.
A digitalização de processos trouxe ganhos como a redução do consumo de papel — o índice foi de 95% até outubro e a meta é que o quantitativo chegue em 100% até o final do ano — e a celeridade na tramitação de propostas legislativas na Câmara Municipal de Fortaleza.
Edital Mulheres Rurais
A inteligência artificial também é aplicada em projetos de inclusão social e digital, como evidenciado no Edital Mulheres Rurais, desenvolvido pelo Projeto São José, da Secretaria do Desenvolvimento Agrário do Estado do Ceará em 2024, em parceria com o Laboratório de Inovação e Dados do Governo do Ceará, o ÍRIS.
O edital foi planejado para promover a acessibilidade e a inclusão digital para mulheres do campo. Para garantir que mulheres não alfabetizadas ou com dificuldades de visão pudessem se inscrever com autonomia e segurança, foi criada a assistente virtual Maria.
A assistente Maria operou por meio de áudios explicativos, orientando as participantes sobre cada etapa do processo e lendo as telas do Sistema Integra — a plataforma de gerenciamento do Projeto São José —, sempre utilizando uma comunicação clara e acessível — técnica conhecida como Linguagem Simples.
O sistema utilizado para a inscrição também foi projetado com cores, tipografias, tamanho de texto, disposição e espaçamento que facilitassem a inscrição dessas mulheres.
Elane Lima, designer de serviços do Projeto São José, pontuou que essa gama de inovações voltadas para uma comunicação acessível foi a mais bem recebida pelas usuárias. “Quando o edital terminou, nós fizemos uma pesquisa e o que mais se destacou foi justamente essa parte de cores, de imagens, de elementos, da Maria, dessa comunicação com essas mulheres. Porque remetia à realidade delas”, comentou.
Em reconhecimento ao seu foco em acessibilidade, o edital foi premiado em junho deste ano com o terceiro lugar na categoria Linguagem Simples do 5º Prêmio Conexão Inova, em Belo Horizonte.
A iniciativa recebeu quase 3 mil propostas, com 200 propostas de negócios selecionadas. As empreendedoras escolhidas receberam recursos de até R$ 30 mil para investir em projetos e assessoria técnica para fortalecer atividades econômicas produtivas, agrícolas e não agrícolas.
Tendências no uso de IA
Segundo o professor Victor Albuquerque, do Departamento de Engenharia de Teleinformática da Universidade Federal do Ceará (UFC), a utilização de ferramentas baseadas em IA pelo Poder Público podem, "se desenvolvidas por especialistas, aumentar a produtividade através da automação de processos e, consequentemente, no aumento da eficiência e eficácia".
Governos têm utilizado IA combinada com RPA (Robotic Process Automation) para eliminar tarefas repetitivas e burocráticas como, por exemplo, triagem documental, análise preliminar de licitações, atendimentos iniciais e cruzamento de dados para auditorias. A tendência é a evolução para sistemas integrados com IA generativa, capazes de executar tarefas mais complexas com maior autonomia, reduzindo filas e acelerando fluxos internos.
Na visão dele, "outra tendência promissora é o uso de IA generativa no atendimento ao cidadão, através de assistentes virtuais inteligentes, que já são utilizados para esclarecer dúvidas sobre serviços públicos, benefícios sociais, saúde, tributação e regras de trânsito".
O professor Vasco Furtado, coordenador do Núcleo de Ciência de Dados e Inteligência Artificial da Universidade de Fortaleza (Unifor), também deu indicativos de tendências desse tipo de tecnologia pelos entes públicos. Conforme explicou, existem dois movimentos principais.
A primeira é que "os governos começam a utilizar agentes especializados baseados em IA para apoiar atividades de alta complexidade jurídica, administrativa e técnica". E também na "análise preditiva e políticas públicas baseadas em evidências", onde "modelos de IA ajudam governos a prever riscos em saúde, educação e segurança, permitindo ações preventivas mais precisas".
Para ele "as ferramentas de inteligência artificial têm um potencial enorme a ser explorado para qualificar politicas públicas e impulsionar sua promoção de forma mais estratégica, eficiente e orientada por evidências". "Esse potencial pode ser compreendido em três dimensões principais: melhoria da formulação, aprimoramento da execução e fortalecimento da comunicação e adesão social", discorreu o docente ao Diário do Nordeste.
Riscos e desafios
Mas Albuquerque salientou que existem aspectos que demandam cuidado. Um deles é a proteção de dados e a privacidade, já que muitas aplicações envolvem informações pessoais e sensíveis, o que requer conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
"Sistemas de IA devem permitir explicação clara de seus critérios e decisões, garantindo rastreabilidade e evitando a sensação de caixa-preta, especialmente em áreas sensíveis como saúde, educação e assistência social. Há também a necessidade de atenção aos vieses algorítmicos, pois modelos podem reproduzir desigualdades existentes nos dados", completou.
Vasco Furtado, que atua em projetos como coordenador do Programa Cientista-Chefe, financiado pela Funcap, chamou atenção para mecanismos de auditoria, supervisão humana e documentação rigorosa, como os utilizados pelo Sistema de Análise e Resumo de Ações (Sara) do Tribunal de Justiça do Ceará e pela ferramenta LicIA da Procuradoria-Geral do Estado, usada para otimizar o processo de licitações.
Modelos de IA precisam operar em ambientes seguros e com protocolos éticos e de privacidade de dados transparentes. Isso é ainda mais relevante em áreas sensíveis como Justiça e Saúde.
Indagado sobre os possíveis desafios, o professor Victor Albuquerque evidenciou que a IA "impõe barreiras estruturais, técnicas, éticas e institucionais que precisam ser enfrentadas para que possa realmente gerar valor público".
De acordo com ele, os órgãos lidam com desafios como qualidade e integração dos dados, falta de profissionais especializados, e questões relacionadas com a confiança a responsabilidade, de modo que seja possível assegurar "que algoritmos não gerem decisões injustas, discriminatórias ou opacas, mantendo explicabilidade, supervisão humana e governança adequada".
Somado a esse rol de desafios estão outros de ordem da segurança cibernética, a necessidade de processos de capacitação e mudança cultural e o atendimento a requisitos legais.
Vasco, por sua vez, elencou mais obstáculos. Em sua compreensão, agentes de IA dependem de "bases organizadas e compartilhadas com segurança, algo que ainda está evoluindo". "É preciso investir em datacenters robustos e conectividade. Caso contrário, o Estado fica dependente de soluções privadas e perde soberania", continuou.
Além disso, segundo ele, "é essencial garantir que as decisões automatizadas não reproduzam desigualdades". Do mesmo modo que a IA, por não ser um produto estático, exige atualização. Por fim, ele pontuou que "a adoção de IA exige que servidores se sintam parte do processo".