Michele Queiroz: da gestão ‘compartilhada’ à construção da identidade como prefeita de Beberibe
O PontoPoder conta a história de uma das prefeitas mais longevas do Ceará.
A imagem não é incomum: ao chegar a um ambiente, de festa ou quem sabe apenas de um jantar, o espaço está dividido. De um lado, a “mesa dos homens” e, do outro, a “mesa das mulheres”. A separação indica que, nos assuntos tratados do lado masculino, a mulher “não precisa participar ”.
O cenário, tão repetido em diferentes cantos do Brasil, é citado por Michele Queiroz, prefeita de Beberibe, para falar sobre a divisão existente na política, entre homens e mulheres, com o domínio histórico masculino – construído em décadas de exclusão feminina.
“Eu queria saber o que estava acontecendo ali”, diz Michele sobre a tal “mesa dos homens”. E, em 2012, ela foi a primeira mulher a ser eleita prefeita de Beberibe, município da Região Metropolitana de Fortaleza – naquele ano, apenas 34 mulheres assumiram uma das 184 prefeituras do Ceará. Agora, Michele Queiroz exerce o terceiro mandato na função — dois deles de forma consecutiva —, um feito inédito na cidade. “A maioria só chegou a dois, mesmo sendo homem”, diz.
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Uma trajetória política iniciada em uma candidatura “de supetão”. Com a desistência de Daniel Queiroz, então marido de Michele, na véspera da eleição municipal de 2012, devido a um impedimento judicial, ela foi o nome indicado para assumir a candidatura à Prefeitura de Beberibe. “Eu nunca imaginava”, relembra.
Na época, ela já tinha experiência em participar de campanhas eleitorais em Beberibe, mas não como protagonista. “Era sempre ele como candidato, e eu ali, dando apoio”, relembra, ao falar sobre a escolha “repentina”.
“Foi algo que eu tive que enfrentar. (...) Nós estávamos num grupo bem articulado, um grupo montado e ninguém podia deixar simplesmente desistir. Então foi um consenso o meu nome para ser a candidata. E aí, pronto, enfrentamos e ganhamos”, arremata.
Esta reportagem integra a série "Prefeitas do Ceará", em que o PontoPoder narra a trajetória política de mulheres que alcançaram a chefia do Executivo municipal em cidades cearenses, a rotina como gestora municipal, os desafios enfrentados e o legado que pretendem deixar como prefeitas — muitas delas sendo a primeira mulher a alcançar o cargo.
Gestão ‘compartilhada’
A virada na carreira, com a conquista do primeiro mandato eletivo, aconteceu em um momento em que Michele Queiroz trabalhava no setor privado, após dez anos de atuação no Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE). Ela usa as experiências profissionais para traçar um comparativo entre o setor público e o setor privado.
A experiência de três mandatos como prefeita permite situar aspectos em que a Prefeitura “não deixa de ser como se fosse uma empresa”. “Tem os funcionários, tem um recurso limitado, tem os pedidos das comunidades, das pessoas que querem que você implemente as coisas. Precisa dosar tudo isso”, lista.
Mas, e nesse ponto começa a diferença, o gestor público, e especificamente o prefeito, precisa ter “mais paciência” e fazer “mais concessões”. As indicações técnicas, necessárias ao bom funcionamento da máquina pública, são equilibradas com as nomeações políticas, que nem sempre contam com a “habilidade técnica”, mas são reforçadas pela habilidade de “tratar com as pessoas”.
Lideranças políticas, principalmente aquelas com mandato eletivo, costumam usar o ‘nós’ ou ‘a gente’ quando falam sobre o próprio trabalho. A demarcação da coletividade aparece na fala de Michele Queiroz ao citar essa necessidade de “realmente ouvir o grupo” para tomar as decisões.
“Na política, você nunca tem uma autonomia total”, crava a prefeita de Beberibe, ao falar sobre os três mandatos no cargo. O primeiro, contudo, foi aquele em que ela mais vivenciou isso. “Essa gestão foi um pouco, assim, vamos dizer, compartilhada”, conta.
“Nós tentamos fazer uma administração em que eu pudesse colocar algo que eu desejasse ou do meu ideal de pensamento, mas também respeitando a ele, que até então seria o candidato”, diz em referência ao ex-marido. “É bem delicado mesmo, porque, quem está à frente, quer o seu destaque. E também não pode apagar o outro, que também tem o seu papel importante”.
Ela explica que, na época, não via o compartilhamento das decisões como algo “muito ruim”. A prefeita relembra inclusive que ter “alguém para dividir” poderia tornar “mais fácil” para lidar com os efeitos de eventuais erros – nada incomuns quando se trata de gestão pública.
“Mas, por mais que tenha alguém ali, que também lhe auxilia, tem momentos em que você tem que enfrentar só”, reforça Michele Queiroz. Não faz sentido “diminuir quem está ali à frente”, defende ela, mesmo quando existe uma forte ligação com o ‘padrinho político’.
“(Quem está no comando da Prefeitura) não tem como se omitir a isso, porque tem momentos em que você tem que ir só, não vai ter ninguém ali do lado. Então, também tem que ter essa firmeza, entender o que está fazendo, porque senão também não se consegue o respeito das pessoas”, defende.
Construção da identidade
A rotina como prefeita de Michele Queiroz é bem delimitada. Durante a semana, as manhã são dedicadas a visitas externas. As agendas acontecem tanto na sede do Município como nos demais distritos – são sete, no total – no “município muito extenso”, como define, com um litoral de 54 quilômetros, incluindo praias famosas como Morro Branco, mas também localidades no sertão cearense, na divisa com cidades do Vale do Jaguaribe, como Russas e Morada Nova.
Durante a tarde, o foco da agenda de Michele Queiroz são os atendimentos no gabinete da Prefeitura de Beberibe. Pelo menos uma vez por semana, eventos de grande porte são realizados, como a inauguração de equipamentos e a assinatura de ordens de serviço.
No dia em que a reportagem do PontoPoder acompanhou um pouco da rotina dela, em agosto, a Casa do Autista foi a primeira parada da prefeita. Ela chegou antes do horário marcado, quando logo iniciou reunião com as profissionais do equipamento. Em determinado ponto, reforçou a necessidade de ir “atrás de psicólogos” para o atendimento nos distritos mais afastados.
“A gente procura não só deixar aqui para a sede, mas também levar para lugares mais distantes, mais longínquos”, explica, referindo-se não só o atendimento a crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), mas a outras ações e programas da Prefeitura.
Na sequência, seguiu para agenda na Sala de Ciência e Tecnologia (ECT) de Beberibe – onde cursos de robótica, programação e informática são ministrados a estudantes da rede municipal de ensino –, onde percebeu um problema a ser resolvido: o ar-condicionado da sala não estava conseguindo climatizar todo o ambiente.
Ela pontua a necessidade de resolução do problema a um dos assessores que acompanha a visita. As demandas feitas aos auxiliares são frequentes durante as agendas externas, algo não exclusivo daquele dia, ela explica. “Eu cobro muito das pessoas que trabalham comigo, elas sabem disso”, relata.
“Às vezes, eu vejo na nas obras alguns detalhes que faltaram ou que (os profissionais) poderiam ter pensado nisso ou naquilo”, exemplifica. “Eu gostaria, nessa parte, de ser mais cabeça fria, deixar passar as coisas, mas eu fico ali querendo que seja tudo bom, tudo melhor”.
As características como gestora municipal, como as citadas, se já estavam presentes no primeiro mandato, entre 2013 e 2016, foram fortalecidas e reconhecidas nos mandatos seguintes.
“Na primeira gestão, ainda não havia essa identidade, porque eu estava ali por outra pessoa. Quando eu voltei, em 2021, eu já estava só. Então as pessoas estavam apostando em mim, efetivamente. (...) A aposta já foi na pessoa da Michele”, afirma.
O preconceito de que política 'é coisa de homem'
Eleita pela primeira vez em 2012, ela exerceu mandato até o final de 2016. Nesse ano, perdeu a disputa pela reeleição para a oposição, que “foi buscar, para ser candidato contra a gente, o padre da cidade”. O desgaste e a frustração causados pela derrota quase afastaram Michele Queiroz da política.
Dois anos depois, no entanto, aliados a convenceram a disputar uma cadeira na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece). Apesar de ficar na suplência, Michele Queiroz foi a candidata a deputada estadual mais votada de Beberibe, com cerca de 9,6 mil votos – mais do que o dobro do segundo colocado.
O resultado representou um “raio-X” do cenário eleitoral na cidade e principal incentivo para, em 2020, ela voltar a ser candidata à Prefeitura. Michele Queiroz saiu vitoriosa naquela eleição e, em 2024, foi reeleita com “a maior diferença que teve” em Beberibe entre a votação de um prefeito ou prefeita eleita, e do 2º colocado – Michele Queiroz superou a votação do adversário em mais de 8,7 mil votos.
O segundo e o terceiro mandato trouxeram o fortalecimento da identidade como gestora municipal, mas também foram afastando situações vividas no início da trajetória política. Ela relata que, ao assumir a Prefeitura, existiam dúvidas sobre com quem falar para tratar dos assuntos da gestão municipal.
“As pessoas diziam assim: ‘Mas para eu tratar desse assunto com ela?’ Havia um constrangimento, por parte até da pessoa, em tratar do assunto comigo”, afirma. Algo que era ainda mais perceptível quando o interlocutor era um homem. “Tratar de algo para eles é mais fácil com outro homem. Foram essas barreiras que foram sendo quebradas”, afirma, e acrescenta: a partir do “meu segundo mandato, já não foi mais assim”.
Hoje essas barreiras enfrentadas, “principalmente com pessoas mais antigas”, estão sendo superadas. Ela cita uma história, ouvida em visita a uma localidade do município, de um senhor que “não votava em mulher”. “‘Ele não tinha nada contra a senhora, mas em mulher ele não votava, porque, para ele, o político era o homem’”, disse ter ouvido.
Na última eleição, no entanto, “ele votou na senhora”, completaram. “É uma conquista”, resume. “As pessoas descobrem como a mulher pode se destacar à frente de uma administração, o olhar talvez mais sensível para algumas causas. (A prefeita) realmente coloca a sua visão da administração, o que é que considera importante, o que é que quer pautar, o que é que quer destacar”.
‘Nem que sim, nem que não’
A certeza agora é de que irá terminar o segundo mandato como prefeita de Beberibe, apesar dos estímulos para ser candidata em 2026. A possibilidade de uma futura candidatura, Michele Queiroz “gostaria de não descartar”, mas também prefere não confirmar.
“Eu não posso dizer que sim, nem que não”, diz. São muitos fatores a considerar, inclusive a opinião dos aliados, porque, como ela destacou diversas vezes durante a entrevista, na política “não se constrói essas decisões sozinha”.
Até 31 de dezembro de 2028, quer cumprir os “vários compromissos” firmados com os beberibenses. A melhoria da infraestrutura, o fortalecimento do turismo, a atração de empresas para a geração de emprego e renda, a descentralização de serviços públicos, “firmar a qualidade de vida” e também ajudar os jovens a “acreditar na cidade, investir aqui, se profissionalizar e ficar aqui” são alguns dos objetivos citados por ela.
A concretização das metas ainda é um “caminhar”, mas algumas barreiras foram quebradas. Se, no início, por ser mulher, sentia que existiam dúvidas e era preciso mostrar que era “capaz de fazer”, agora ela sente o entendimento e compreensão da identidade como gestora municipal e dos feitos que alcançou.
Mais de uma década depois de ter sido a primeira mulher eleita para a Prefeitura de Beberibe, assiste a mais mulheres sentarem na ‘mesa’ antes reservada apenas para homens. “Tem mais mulheres à frente das prefeituras. (...) Eu vejo elas muito preparadas para estar à frente da administração”, ressalta. “E hoje eu vejo muitas mulheres realmente mostrando esse lado”.