Senhoras e senhores,
Meu nome é Preto Zezé, um jovem preto, sobrevivente das ruas. Sou nascido e criado nas quadras de Fortaleza, no Ceará. Meus pais são retirantes nordestinos que, fugindo da seca e da fome, vieram tentar vida nova na capital cearense. Muito cedo eu tive que assumir responsabilidades para levar alguns trocados para dentro de casa, já que as notas azuis da escola não empolgavam como as notas azuis de dinheiro.
Mesmo com as dificuldades, consegui com supletivos e muito esforço concluir meu segundo grau e entrar na universidade. Ainda assim, tive que abandonar os estudos devido às necessidades da vida falarem mais alto. Hoje, presido a Central Única das Favelas (CUFA), organização que está presente nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal e, agora, em mais 20 países, sendo as últimas sedes criadas na África, especificamente na Etiópia, Guiné Bissau e Camarões.
Veja também
No início de 2021, mobilizamos, com o apoio de muitos de vocês, cerca de 187 milhões de reais, atendendo 6 milhões de pessoas. Atualmente, já estamos em 513 milhões de reais, o que nos leva para um atendimento de quase 30 milhões de pessoas que antes eram invisíveis para os estados brasileiros. E se por um lado é preciso questionar empresários que com 2% do seu faturamento poderiam manter seus funcionários em casa, mas optaram por demiti-los, é fundamental reconhecer e registrar uma postura inversa por aqueles e aquelas que decidiram dividir um pouco com quem precisa muito.
Mas a favela não é somente tragédia e dificuldades. Antes da pandemia, esse público produziu 119 bilhões de reais, o que corresponde ao PIB de países como Uruguai, Bolívia e Paraguai. Se a favela fosse um estado, seríamos o quarto da federação. Ou seja, gente que produz riqueza, que faz o país andar, que foi e está sendo essencial para manter o país nos trilhos, embora não seja prioritária quando se pensa em apoio e investimento.
E, neste momento, eu escrevo a vocês, direto da favela de Heliópolis, localizada em São Paulo, onde meu presidente da CUFA regional de São Paulo está pilotando a entrega de marmitex. Atualmente, são produzidas e entregues mais de 1.400 marmitas todos os dias, feitas na nossa cozinha comunitária, que mesmo sem apoio continua a todo vapor.
Isso porque o nosso país passa por uma das crises sociais mais graves da história: sanitária, econômica e social. São várias crises numa só. Só na sanitária já perdemos mais de 600 mil vidas, fora os que sobreviveram e ficaram com sequelas. Por isso, escrevo a vocês para propor um pacto diante de uma realidade que o fogo da fome - embora não queime vocês - já incendiou a esperança e já queimou mais de 20 milhões de brasileiros que não vão comer hoje.
Não sei qual dos senhores e das senhoras já passou por essa realidade dolorida - eu já passei -, mas lhes digo que é mais que uma dor física. Ela afeta a fé na vida coletiva. Ela corrói os acordos e avanços civilizatórios. Ela degenera a nossa frágil e incompleta democracia e nos faz perder a esperança de que a vida será melhor, e é aí que reside a maior das crises, pois na hora que as pessoas acordarem e enxergarem que não tem para onde ir, estará decretado o caos. E eu espero que esse momento não chegue, apesar de ver ele avançando a passos largos.
Eu ando pelo Brasil invisível de Norte a Sul do país, vendo cenas de gente catando pelanca, pegando restos ou comprando osso - e aqui não falo do caldo de osso não, pois dona Fátima já fez para mim -, se acotovelando para levar qualquer coisa para casa para se alimentar e viver mais um dia, o que me assusta e preocupa.
Por isso, conhecendo essa realidade e sabendo que vocês são pessoas que pertencem a uma elite - e aí falo no sentido não somente do dinheiro, apesar de nosso país ter sido forjado a aceitar que elite é somente pessoas que têm dinheiro - peço ajuda para juntos buscarmos reverter essa realidade que assola nosso Brasil.
Não é possível sustentar esse quadro por muito tempo. Não será possível chamar esse país de nação com estes indicadores de desigualdade e esse quadro que degrada todos os outros. As pessoas passaram a se apegar ao desespero social e a fazer justiça com as próprias mãos e, na questão social, virando caso de polícia, a qual costuma tirar a vida de pretos e pobres, fardados ou não, numa guerra sem vencedores.
O divórcio da política afasta a população das decisões. A classe política, no geral, pensa em suas eleições, suas coligações e seus candidatos em 2022, enquanto o mar vermelho de 2021 se abre e não sabemos como cruzá-lo.
Há anos que esse modelo concentrador de riquezas nas mãos de poucos não responde a uma sociedade decente, degradando a natureza, fragilizando os mais pobres, gerando violência de toda a ordem e, pior ainda, causando a descrença num amanhã melhor.
Onde os senhores e senhoras acham que isso vai parar? O que estão esperando para interferir no rumo de uma agenda pública de interesse da maioria? De influenciar e pautar o mundo político por meio de suas empresas e apontar para uma lógica econômica do cuidado e não somente do lucro acima de tudo?
A sensação que tenho ao conversar com alguns de vocês é que parte não sabe para onde ir e a outra parcela está esperando para ver que lado o barco vai. Só que, neste caso, o naufrágio é geral e o afogamento é coletivo. A necessidade de fazer um pacto com a sociedade para enfrentar estas questões é papel de todos os líderes: das favelas, do asfalto, da política e fora dela. Isso se quisermos evoluir e ter orgulho de se considerar um país. Do contrário, seremos essa ilha de desigualdades, cercada de fome, medo, violência, mágoas e racismos de todos os lados.
Se não compartilharmos oportunidades e riquezas hoje, talvez todos nós, de uma maneira ou de outra, teremos que conviver com as tragédias que o modelo concentrador gera e faz aumentar a desigualdade.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.