Os corais de Natal, os meninos castrados e a vida de Paulo Abel do Nascimento
Lembro dos meninos cantores, castrados para atender o desejo por arte das elites europeias, os Castrati italianos e, depois, sempre lembro do "último castrati”, o trágico cearense Paulo Abel do Nascimento
O ‘Coral de Luz’ ilumina a Fortaleza.
Domingo à noite a Avenida 13 de Maio esteve parada, mais lenta que o habitual no entorno do Santuário de Fátima, e não era pelo fim da celebração católica dominical, era a passagem do carro do Natal de Luz, evento natalino que já marca um tradição do B-R-O-BRÓ cearense.
Quando identifiquei o motivo da lentidão, retomei o sentimento agridoce que os corais natalinos sempre me trazem. O caminhão iluminado e decorado com os adornos natalinos e as vozes das crianças do Coral de Luz, que a cada final de ano revitalizam as sacadas do Hotel Excelsior, me enchem de alegria e lembranças duras.
Há anos não consigo ver os alegres corais sem lembrar de uma das mais distorcidas marcas culturais da Itália medieval/moderna. Lembro dos meninos cantores, castrados para atender o desejo por arte das elites europeias, os Castrati italianos e, depois, sempre lembro do "último castrati”, o trágico cearense Paulo Abel do Nascimento.
Os castratis
Gosto de música lírica. Aprendi a gostar apenas na universidade, quando os musicais se aprofundaram em sentido e significado e deixaram de ser uma chateação dos filmes da Disney.
Só fui ter educação musical mais consistente no início da vida adulta, foi quando conheci a tragédia dos Castrati e de a que ponto a humidade pode chegar em nome do que considera belo e do quanto podemos nos submeter em nome de status e ascensão social.
Castrati é o plural da palavra italiana castrato. Eram jovens castrados na infância, meninos que se destacavam nos corais pelas vozes ‘angelicais’ e que, ao chegarem na puberdade, para não perderem o timbre delicado, eram castrados para que suas vozes não mudassem, engrossassem, amadurecesem.
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Esses jovens eram transformados em mero vasilhame de suas artes, servido às suas vozes e não se servindo delas, mas, podiam ficar tão ricos que alguns se submetiam em nome de uma vida melhor.
Os ‘escolhidos’ passavam por uma intervenção cirúrgica entre oito e doze anos que inibia a produção da testosterona e preservava a suavidade, enquanto o restante do corpo do cantor se desenvolvia normalmente: eram a voz de uma criança com os pulmões e a capacidade respiratória da maturidade vocal adulta, a suavidade de um menino e a potência vocal de um homem feito. Um meio termo entre o feminino e o masculino.
Desde a Idade Média, as mulheres eram proibidas de participar de espetáculos religiosos públicos. O papa Inocêncio 11º, no século 17, proibiu mulheres nos teatros dos Estados Pontificais, não eram admitidas como parte do coro ou da capela musical. Para ter sopranos e contraltos era preciso, então, de meninos de voz aguda. Nascia um mercado musical, a formação de Castrati.
O auge foi na Itália do século 16, mas há registros da prática até o século 19. No apogeu da ópera italiana, as peças já eram pensadas para cantores castrados e sua voz peculiar, nem masculina de fato, nem feminina em si. Virou uma indústria, sedenta de vozes e corpos e que criavam verdadeiras celebridades. A carreira de alguns Castrati era pontos fora da curva como a do divo Farinelli, uma celebridade quando o termo nem sequer existia.
Na segunda metade do século 18, a popularidade dos castrati começou a entrar em declínio ante a barbaridade de sua emasculação. Aos poucos, a atuação de mulheres foi crescendo nas óperas e esses papéis foram assumidos por vozes femininas.
Porém, muitas peças compostas exclusivamente para castrati evidenciam a popularidade dessa prática e tornam certos cantos complexos, quase impossíveis para as vozes binárias masculinas/femininas de hoje em dia.
A beleza inegável e popular dos corais e o sucesso e riqueza das óperas escondem realidades complexas de uma máquina violenta de produção do belo e do erudito. E isso não ficou de todo no passado.
Paulo Abel: O lirismo do Benfica
A segunda memória amarga que me vem dos corais é sobre 'o cantor lírico do Benfica', o castrati cearense: Paulo Abel do Nascimento e sua esfuziante e trágica trajetória.
Filho da periferia fortalezense, décimo quinto filho entre muitos irmão natimortos e mortos na infância, Paulo Abel estava destinado à morte e vida severina de seus iguais não fossem os violentos giros da fortuna.
O pequeno Paulo teve um acidente, machucou os testículos e foi levado a unidade de saúde com muita dor. O descaso médico e o pouco conhecimento familiar levaram a um trauma permanente. Paulo Abel não entrou na puberdade, não produziu testosterona, era um Castrati acidental.
A voz única, fina e potente, que o tornou alvo da maldade infantil de colegas e adultos levou o menino pobre do Benfica ao estrelato na Europa. Paulo Abel, salvo da pobreza pela educação e pela música, se tornou um cantor singular na forma e no conteúdo, foi considerado um dos grandes nomes da cena lírica do Século 20.
Apareceu na música no coral que hoje é o IFCE, partiu para o Sul para estudar música. Revelado como “castrati’ pelo professor Roger Cotte, foi encontrado pelo mundo lírico. Conseguiu bolsa de estudo no Instituto do Renascimento Musical, em Florença, Itália.
O menino que passou fome no Benfica foi de vez para a Europa, virou protegido da famosa e multimilionária família Gucci, explodiu no mundo da moda, da arte e da música do continente velho. Deixou os salões europeus eufóricos e maravilhados. Sua voz era perfeita para a lírica barroca, mas também se permitiu divulgar a musicalidade brasileira e o bom forró da terra de Alencar.
Em 1987, foi o primeiro artista brasileiro a cantar na já inacessível Coreia do Norte. Em 1989, foi o único brasileiro cantando no bicentenário da Revolução Francesa. O fortalezense chegou a participar, de forma breve, mas marcante, do excelente filme Ligações Perigosas, de Stephen Frears interpretando o canto de um Castrati. O filme vale por si, mas ver nosso conterrâneo o torna ainda mais interessante.
Paulo Abel foi para a Europa, mas sempre voltava ao Ceará e aqui, apesar da indiferença e menosprezo de muitos de seus irmãos de terra, quis promover um legado artístico e pedagógico em música, quis atingir meninos que, como ele, pobres e desprezados pela arte erudita local, poderiam crescer cantando e tocando a arte e o canto da Jandaia. Se dedicou a educação musical para crianças e jovens das classes menos favorecidas e formou gente que está até hoje produzindo e vivendo de suas artes.
Lutou para montar uma "Ópera Nordestina", era fértil de projetos e gestava inquietudes musicais quando teve seu caminho interrompido pela morte precoce em 1992, aos 35 anos de idade. Seu biografo, Gabriel Petter, disse que aquele menino gay, mestiço e pobre, “tudo que a nossa sociedade detesta", estaria fadado ao esquecimento se não fosse seu talento tão único. Mas sua vida era uma ária de tragédia anunciada.
Tanto os verdadeiros castratis quanto Paulo Abel demonstram como beleza e dor, riqueza e miséria, canto e choro se entrelaçam nos bastidores dos espetáculos. Desde que conheci a história de Paulo Abel, penso nele sempre que vejo um coral, penso nas dores e sacrifícios, nas possibilidades e nas incompletudes que aquelas angelicais e pequeninas vozes ocultam e encerram.