Dia da consciência negra e a Revolta da Chibata

A Marinha era um grande espelho das contradições do Brasil: um gigante econômico, moderno e geopolítico, mas ainda lutando pra se soltar das correntes de um passado escravocrata

Legenda: Marujos rebeldes no navio encouraçado 'São Paulo'
Foto: Biblioteca Nacional Digital

Homens eram vendidos ao Estado brasileiro, submetidos a trabalhos árduos e em longas jornadas. Os fugidos eram caçados, presos e castigados; os ‘indisciplinados’ eram açoitados em público.

Esse seria um relato tragicamente comum durante os quase 4 séculos de escravismo brasileiro. Por pior que fosse, o relato caberia ao Brasil escravista; mas não, esse é um relato da vida dos marinheiros negros 22 anos após a abolição da escravatura. Em 1910, em pleno século 20, pós-abolição, pós-república, em plena campanha civilizacional do Brasil cordial. O Brasil negro e marginalizado ainda gemia sob a violência do chicote.

Das promessas, das permanências escravocratas e da revolta consciente e planejada

Na transição para o século 20, o Exército e a Marinha enfrentavam problemas graves de falta de pessoal, pois eram raros os casos de voluntários ao serviço militar. Grupos de recrutadores civis e militares ganhavam dinheiro para cada jovem levado à força para o serviço militar. Era uma nova modalidade de comércio de gente.

A Constituição de 1981 proibiu torturas, castigos físicos e comércio de pessoas, mas, na prática, a maior, mais antiga e mais tradicional força armada do país era um meio institucional destas continuidades e disputas. Na Armada, a mentalidade era nitidamente escravocrata, oficiais pareciam uma nova linhagem de senhores, e os porões de seus navios pareciam novas senzalas flutuantes. Eram uma continuidade da lógica escravocrata na forma e no conteúdo.

Em 1910, o país contava com os mais novos e poderosos encouraçados do mundo: o Minas Gerais e São Paulo. Navios tão modernos precisavam de pessoal especializado, muitos marinheiros tiveram que ser treinados na Europa e, embora a Marinha fosse dura em todo o mundo, a condição com que os brasileiros eram tratados eram de um contraste tão gritante que horrorizou os estrangeiros e evidenciou a violência naturalizada pelos nosso escravismo. Ficava claro que aquelas violências não podiam mais ser toleradas.

A Marinha era um grande espelho das contradições do Brasil: um gigante econômico, moderno e geopolítico relevante, mas ainda lutando pra se soltar das correntes de um passado escravocrata que teimava e teima em ser presente.

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A ameaça do Mão Negra: 'Não temos nada a perder'

No começo de 1910, o oficial Alberto Durão recebeu uma carta assinada por “Mão Negra”, o marinheiro cearense Francisco Dias Martins, que alertava os oficiais a bordo. Clamava para que os comandos notassem o peso e a importância do trabalho dos marinheiros, que os que reclamavam não eram bandidos ou indisciplinados, apenas lutavam para não ser “escravos de oficiais da marinha”.

O "Mão Negra" disse, por fim, que a Marinha funcionava como uma fazenda de escravos e finalizou alertando que os subordinados estavam em silêncio, mas, despertos : “cuidado![...] deixe de carrancismo, tenha pena de si e de seus colegas, que nós não temos nada a perder.”

A Armada contra a chibata

No dia 21 de novembro, o marinheiro Marcelino Rodrigues, baiano, recebeu 250 chibatadas por conta de indisciplina. As costas do preto nordestino foram massacradas no mais moderno convés do mundo: foi o estopim da Revolta. Dia 22 o movimento explodiu. Foram quatro dias de tensão. Os revoltosos expuseram o cotidiano de castigos físicos, as péssimas condições de trabalho, as baixas remunerações dos marinheiros.

O governo, sem meios de lutar contra o poder de fogo dos revolucionários, propôs uma anistia aos envolvidos, prometendo avaliar a situação quando entregassem as armas. A proposta agradou os marinheiros.

A Revolta não era pelo poder, era por visibilidade, e agora olhos e ouvidos do país se voltaram para os navios. Mas a história não acaba no final feliz e cordial.

A Marinha reagiu, marinheiros foram perseguidos e presos. No Natal de 1910, uma reedição de navio negreiro zarpou com mais de cem prisioneiros para o Acre, onde seriam mão de obra nos seringais e na construção da Ferrovia Madeira-Mamoré. Muitos não chegaram ao destino. O Atlântico foi, como para muitos de seus antepassados, uma cova coletiva.

Legenda: Jornal noticiou o fim da Revolta
Foto: Correio da Manhã/Biblioteca Nacional Digital

João Cândido e mais dezessete marinheiros não tiveram essa "sorte". Amontoados numa cela da Ilha das Cobras, com pouca luz e sem entrada de ar, foram obrigados a lavar a cela com cal diluído para desinfetar o insalubre local. O comandante do batalhão saiu e levou a chave da cela. A água evaporou, a cal voltou a ser pó e passou a envenenar os marinheiros.

Atordoados, eles gritavam para sair, gritavam por ar, gritavam intoxicados e aí pararam de gritar. Dezesseis morreram asfixiados. João Cândido sobreviveu à câmara de gás da Ilha das Cobras, mas não ileso. Acabou internado em um hospital psiquiátrico, por continuar ouvindo os gritos dos seus falecidos colegas.

O “Ceará” e a memória da Chibata

Francisco Dias Martins, o "Mão Negra", também conhecido como “Ceará”, comandou o navio Bahia durante a revolta. O cearense é apontado em diversos documentos como o “mentor intelectual” do levante. Mesmo que quase nunca se fale sobre ele, é o provável autor do manifesto oficial dos marinheiros. Para Edmar Morel, maior memorialista do conflito, Dias Martins era o cérebro da revolta, enquanto João Cândido seria a ação.

O manifesto do cearense e seus companheiros não era apenas contra a violência física. Era por melhores salários, melhores condições de trabalho, regramento de horários e atividades justas e dialogadas, era por educação para os marinheiros. Era um petição para a Marinha, mas que serviria a todos os marginalizados do Brasil, civis e/ou militares.

O dia da consciência e as revoltas dos dias seguintes

A palavra "consciência" vem do latim, mas o termo "conscientia" pode ter duas origens: consciens = estar ciente junção de cum, partícula de intensidade, e scire = sei ou da junção conscius+sciens ; conscius (que sabe bem o que deve fazer) e sciens (conhecimento que se obtém através de leituras; de estudos; instrução e erudição).

De uma forma ou de outra, a forma de ter consciência é saber, estudar, conhecer, e para isso é preciso acessar, lembrar, divulgar.

Dia de consciência é dia de entender – a importância do dia 20 de Novembro é incalculável –, mas ainda vêm os dias seguintes, reais e cotidianos. Daí a necessidade de pensar o dia seguinte, agir, mobilizar e transformar. Afinal, do que adiantar saber e conhecer se esses saberes não nos moverem às águas e embarques mais profundos?

Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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