Desaparecimentos, narrativas de silenciamento das memórias
O clichê de que o desaparecimento é pior que a morte não é apenas senso comum é o sincero externar de nossos medos mais profundos
Alguém que espera o retorno de um desaparecido não tem luto, tem apenas uma incansável luta contra o vazio, o medo e a esperança/desilusão de todos os dias esperar uma batida de porta, um chamado ao longe, um abraço fortuito.
O clichê de que o desaparecimento é pior que a morte não é apenas senso comum é o sincero externar de nossos medos mais profundos. A morte é dolorosa, mas esperada.
O vazio, o sumiço, a ausência lidam com o medo do desaparecer. Se a dor da ausência é cruel, a dor de saber que esse desaparecimento se deu de forma violenta torna tudo ainda mais difícil.
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Hoje, 30 de agosto, a Organização das Nações Unidas institui o Dia internacional das vítimas de desaparecimentos forçados, entendendo que precisamos denunciar situações assim e criar formas de acolher as famílias que lutam nessa batalha insuportável.
Para reforçar essa importância tivemos no dia 28 de agosto a data de rememoração da lei de Anistia pós-ditadura, essas duas datas se chocam em sentidos e movimentos de confronto. É o esforço de esquecer contra a luta pelo lembrar.
A atuação da história e do historiador é a busca pela superação dos silêncios, dos vazios das narrativas e do silenciamento das memórias. Peter Burke diz que a função do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer, dessa forma, nosso lado no confronto dessas datas é muito claro.
Como forma de humanizar essas questões trataremos neste texto da história do cearense Bergson Gurjão e de sua família, em especial à memória de sua mãe Luiza Gurjão Farias.
Universitário, guerrilheiro, símbolo e marco
Bergson nasceu em Fortaleza no dia 17 de maio de 1947, era um grande atleta, chegou a vice-campeão nacional de basquete, era um jovem apaixonado por Noel Rosa e por política, ingressou no curso de Química da UFC, foi presidente do Diretório Acadêmico e vice-presidente do Diretório Central Estudantil.
Representou os estudantes da UFC no famoso congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna, São Paulo. O encontro, descoberto pela polícia, levou muitos estudantes para a prisão enquadrados na Lei de Segurança Nacional.
Bergson foi preso, fichado e expulso da UFC, daí optou por continuar a lutar na clandestinidade. Começa então sua história com a luta armada. A Guerrilha do Araguaia foi a principal ação de combate dos militantes de esquerda contra a ditadura militar.
O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) mobilizou grupos de jovens que migraram para a região amazônica, margeando o rio Araguaia, entre fins da década de 1960 e a primeira metade da década de 1970. Na área conhecida como Bico do Papagaio começaram a fazer trabalho de base com a população visando uma ação popular contra o governo quase inexistente na região.
Mas as Forças Armadas descobriram cedo a ação e então foi montada uma grande ação das três forças armadas no meio da floresta.
A guerrilha foi oficialmente identificada em Fortaleza, numa controversa operação na UFC, com a prisão de ex-guerrilheiros na capital cearense. A descoberta da guerrilha deu início à ação militar e o movimento de base se transformou em combate aberto, a chamada Operação Papagaio envolveu mais de 1,5 mil militares.
Guerrilheiros presos nas primeiras incursões ainda sobreviveram, com intuito de delatar posições e estratégias da guerrilha, torturados, acabaram ficando sob controle do estado.
Os outros, que caíram ou foram capturados em combate, foram simplesmente descartados. Até hoje não há consenso sobre o saldo de mortos e a maioria dos desaparecidos continua sem paradeiro ou notícia.
Bergson Gurjão foi o primeiro guerrilheiro a ser morto. Ele estava prestes a completar 25 anos.
Sobre corações grandes e caixões pequenos: o retorno de Bergson e seu encontro com a mãe
A família de Bergson esperou por décadas o retorno do filho, notícias, informações oficiais ou qualquer sinal que indicasse um conforto para o coração. A procura durou 37 anos. Sua mãe, Luiza Gurjão Farias, nunca cansou de buscar, tinha 94 anos quando recebeu a notícia de que seu filho tinha sido encontrado.
Após alguns anos do fim da ditadura militar, ossadas e cemitérios clandestinos foram encontrados, mas, nunca houve um real esforço do estado para procurar esses desaparecidos. Ossadas foram encontradas na região do Araguaia em 1996, após anos de abandono e descaso a ossada ‘X-2’ foi identificado por DNA em 2009 como sendo Bergson.
Seus restos mortais foram então trazidos para sua casa, para sua terra, para sua mãe. Em Fortaleza ele foi homenageado na Concha Acústica da Universidade Federal do Ceará, seu caixão foi num caminhão do Corpo de Bombeiros para o cemitério Parque da Paz.
A edição do Diário do Nordeste no dia contou sobre silêncio e a emoção do sepultamento, a execução do Hino Nacional e o olhar de Dona Luiza acompanhando a cerimônia, quieta, com os olhos fixos no caixão. Mesmo aliviada, confortada por ganhar um local onde rezar e acender uma vela para ele só queria estar com seu filho. Na ocasião comentou, entre a dor e a resiliência como era esquisito terem levado “um homem tão grandalhão” e devolvido “um caixão tão pequeno!”
Quatro meses depois ela também descansou. Morreu aos 95 e foi enterrada junto ao esposo e Bergson.
A busca por corpos no Araguaia e por muitos desaparecidos sob a ação do estado brasileiro não pode e não deve cessar. Em 2010 a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o Estado brasileiro pelos desaparecimentos no Araguaia. A corte internacional de justiça considerou inadmissível a aplicação de anistia a crimes como tortura, execuções e desaparecimentos forçados: crimes imprescritíveis. Para a CIDH, a Lei de Anistia não pode impedir investigações sobre os desaparecimentos.
A guerrilha do Araguaia é o símbolo maior da perniciosidade da Anistia pós-ditadura e da luta pela memória das vítimas desses e de outros desaparecimentos forçados. O encontro de Bergson Gurjão e sua mãe é um dos símbolos mais potentes do quanto essas dores e esses crimes não podem continuar separando pessoas e o Estado não pode promover sofrimentos assim impunemente.