A história de São Jenner, o santo que curou a varíola no Ceará

Como a genialidade de Rodolfo Teófilo, a fé do povo e a vacinação salvaram vidas há 100 anos no Estado

Legenda: Campanha de vacinação contra a varíola em 1970, em Alagoas; pistola de pressão era utilizada para aplicação
Foto: Acervo Casa Oswaldo Cruz

No começo do século XX, a varíola se propagava com velocidade assustadora pelo estado do Ceará, matando quase um quinto da população da capital cearense. Deus então teria atuado através de São Jenner para salvar seu povo. O santo vivia no sertão, em um lugar onde morriam mais de mil pessoas por dia.

Então, um anjo teria indicado a Jenner um bezerro doente, orientado o milagreiro a espetar um espinho de roseira no animal e depois espetar os homens e mulheres da comunidade, levando a cura a todos os fiéis.

Essa incrível história convenceu centenas de pessoas a se vacinarem no Ceará. O problema é que o milagroso São Jenner nunca existiu, não como devoto: ele é obra da mente inquieta e brilhante do farmacêutico Rodolfo Teófilo.

A narrativa mística foi a forma que o sanitarista encontrou de convencer parte da população a se proteger contra a varíola. O santo era na verdade uma releitura sacra do médico Edward Jenner, criador da vacina da varíola. O cientista foi "beatificado" pelo cearense como forma de aproveitar a espiritualidade popular e atingir mais pessoas. 

Rodolfo promovia vacinações gratuitas em sua farmácia, por vezes pagava para imunizar pessoas e mesmo assim não conseguia ampliar sua campanha. Dessa forma, tal qual um Quixote cearense, montado em cavalos e burras com doses da vacina que ele mesmo fabricava, ele partiu para os bairros populares.

Sob as bênçãos de São Jenner, ele evitou a epidemia na cidade e salvou milhares de vidas.

Rodolfo Teófilo entre doenças e tragédias

Filho do médico Marcos José Teófilo, Rodolfo poderia ter tido uma vida abastada, mas Lira Neto nos conta que sua vida foi marcada pela doença e a tragédia. Viveu com a família em Maranguape e Pacatuba. Sua mãe morreu quando tinha 4 anos; aos 9, em 1982, viveu a grande epidemia de cólera, que matou milhares de cearenses e vitimou quase um terço dos habitantes de Maranguape. Em 1864, perdeu o pai. 

As dificuldades financeiras o fizeram trocar os estudos pelo trabalho, mas estudando nos intervalos do trabalho e nas madrugadas conseguiu ingressar na faculdade de farmácia. Queria ser médico, mas a renda não permitiu. Formado, viveu de perto o drama da grande seca de 1877-1879, quando o inferno se abriu sobre a capital cearense.

Seu livro ‘A Fome’ (1890), obra que inaugurou o Naturalismo na literatura cearense, retratou a realidade das mazelas sociais desses anos.

O detalhamento cáustico da animalização do retirante em transe de fome, o desespero que fazia com que flagelados comessem xique-xique, cães, gatos, morcegos, calangos, cobras, urubus e até mesmo carne humana marcou gerações de leitores.

Para Teófilo, aquele terror era culpa do descaso do Estado, da corrupção das autoridades e da insalubridade dos abarracamentos. E então a varíola chegou. 

O combate à varíola e a luta contra o governo 

A temida doença apareceu em Pacatuba no final de 1878, provavelmente vindo do porto de Aracati. O comércio fechava as portas e as pessoas evitavam sair, mas o amontoado de doentes e mortos só crescia. Teófilo, revoltado com as (in)ações e escolhas do governo, com as cenas de violência contra os miseráveis, decidiu iniciar sua campanha contra a doença. 

Foi nesse contexto que a história de São Jenner se construiu. Esse é um exemplo próximo e pungente de como as narrativas populares se constroem e de como as lendas – sempre vinculadas à elementos da realidade histórica – surgem. A história da transformação do médico em santo popular mostra uma faceta humanista do intelectual Rodolfo Teófilo.

Esse grande líder abolicionista se destacou por conseguir dialogar com as necessidades e medos do povo, demonstrando a empatia e cuidado que a intelectualidade e as autoridades por vezes desprezam e abandonam.

Essa sensibilidade fez com que enquanto na Fortaleza de 1902 mortes fossem evitadas, no Rio de Janeiro, em 1904, a revolta contra vacina virasse uma guerra civil. A história de São Jenner e de Rodolfo Teófilo mostra que contra as doenças, os descasos governamentais, os negacionismos e intolerâncias, a cura pode estar tanto na ciência quanto na humanização do tratamento. 

Para conhecer mais:

  • O poder e a peste : a vida de Rodolfo Teófilo / Lira Neto
  • Capital de um Pavoroso Reino: Fortaleza e a seca de 1877. Frederico de Castro Neves. Revista do Departamento de História da UFF. 2000
  • Rodolpho Theóphilo (O polivalente polêmico). Ednilo Gomes de Soárez. Revista do Instituto do Ceará - 2009