'Tratamento de Princesa': forma de cuidado ou prisão invisível?
Trend #PrincessTreatment disseminada nas redes socias soa quase banal, mas pode ser campo de disputa simbólica
Recentemente, senti um grande estranhamento ao me deparar com a polêmica em torno de uma trend batizada de "tratamento de princesa". À primeira vista, a expressão me soava quase banal, como se fosse apenas uma metáfora sobre ser bem tratada, acolhida com atenção.
No entanto, nas redes, a ressonância dessa expressão parecia ir muito além do óbvio. Longe de um significado consensual, o tal “tratamento de princesa” parecia um campo de disputa simbólica.
Na internet, encontrei uma total ausência de consenso sobre o que seria o tal "tratamento de princesa". Múltiplas interpretações, diferentes juízos de valor e sentidos inesperados.
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Foi então que me lembrei de que a própria palavra “princesa” carrega consigo uma constelação inteira de imaginários. Nela se entrelaçam genealogia e fábula, ternura parental e amor conjugal, crítica e reverência estética, poder e fragilidade.
"Princesa", na acepção genealógica, é herdeira do trono, filha de rainha ou esposa de príncipe. Mas, em muitas famílias, a palavra abandona esse viés dinástico e se torna apelido íntimo. O modo como pais embalam filhas, como se dissessem ,"filha, tu és preciosa". Na vida amorosa, não raro, a palavra também se torna um vocativo carinhoso, uma palavra de ternura à pessoa amada.
No entanto, o tom muda bastante quando dizemos que alguém "se acha uma princesa" — aqui, "princesa" é rótulo para quem se coloca acima dos outros, para uma pessoa mimada, excessivamente exigente. Já em outros contextos, ao dizer “fulana é uma princesa”, elogia-se a beleza de alguém, colocando-a quase no patamar de musa.
E, claro, há ainda as princesas dos contos de fada, que povoam nosso imaginário com imagens de delicadeza, beleza idealizada, virtude inabalável; porém, paradoxalmente, frágeis, passivas, à espera do resgate de um príncipe encantado — essas princesas contrastam com figuras históricas, como Zahra Khanom, princesa iraniana cujo corpo robusto e trajetória política contradizem os estereótipos de frágil donzela.
Mesmo ciente de tantos sentidos possíveis, não me parecia haver muito o que problematizar em torno de um “tratamento de princesa”. Para mim, a expressão soava como sinônimo de um tratamento gentil — o modo como filhos dedicados tratamas mães, como parceiros atenciosos tratam as companheiras, como mães embalam filhas queridas. Ou seja, nada de polêmico, nada de extraordinário.
Por isso me surpreendeu que a trend despertasse tamanho fervor e tivesse mais de 135 mil publicações com a hashtag #PrincessTreatment. Imaginei, então, que talvez tivesse surgido um novo uso para a expressão: talvez, agora, "tratamento de princesa" se referisse a um movimento de mulheres que, exaustas da sobrecarga emocional e doméstica, passassem a exigir não apenas reciprocidade, mas um pedestal.
Nesse caso, não estaríamos mais no terreno da igualdade, mas da hierarquia — princesa de um lado, súdito do outro. Claro, se fosse isso, haveria muito terreno para polêmicas.
No entanto, minha busca nas redes não me revelou um novo sentido para o termo, mas um panorama fragmentado de compreensão. Constatei que, para alguns, o “tratamento de princesa” restringe-se a gestos cotidianos de afeto: flores recebidas, bilhetes deixados na mesa pelo parceiro, café na cama ocasionalmente, pequenas surpresas.
Confesso que, em meu universo, esses gestos não me parecem mais do que o mínimo que deva ter em um relacionamento saudável, algo que poderia (e deveria) ser mútuo, realizado por ambos na relação, independentemente de gênero. Contudo, em uma sociedade atravessada por feminicídios e negligência afetiva, o mínimo aceitável pode soar como privilégio da realeza.
Encontrei ainda aqueles que vinculassem o “tratamento de princesa” ao poder econômico: receber do cônjuge presentes luxuosos, jantares caros, viagens sofisticadas. Ou seja, aqui, o carinho se confundiria com ostentação e, postado nas redes, se reduziria a um luxo performático.
Essa perspectiva, de fato, traz alguns incômodos — estariam mulheres se precificando? Atribuindo um preço ao afeto? Essa lógica é perigosa, transforma amor em transação e consumo. E os homens que não vivem em bonança financeira, estariam imediatamente eliminados das possibilidades conjugais?
Sob esse viés, correríamos o risco de ensinar aos nossos meninos de que é preciso ganhar muito dinheiro para "comprarem" o direito de serem amados.
Encontrei, ainda, uma multidão de pessoas que enxergam no "tratamento de princesa" um gesto de infantilização, um cavalheirismo paralisante que aprisiona a mulher na condição de frágil a ser protegida.
Compreendo a crítica, afinal, ainda vivemos em uma sociedade estruturalmente machista, mas também é preciso ter cuidado com generalizações. Parece-me exagero demonizar todo e qualquer gesto de cuidado, como se toda flor escondesse um espinho monstruoso. Nem toda gentileza é um prelúdio de opressão.
Uma mulher que gosta de receber flores não está necessariamente compactuando com um regime patriarcal, que lhe sequestra a autonomia e lhe oprime. Às vezes, ela só gosta de flores — ponto final. Nem todo presente é um cavalo de Troia da opressão patriarcal; na maioria das vezes, é só um presente.
Mais importante do que demonizar flores, cafés na cama ou presentes, seria aprender a discernir se tais gestos são expressão de cuidado mútuo ou apenas uma transação disfarçada, uma espécie de compra da autonomia da mulher em parcelas simbólicas, em que cada gesto de afeto é moeda de troca.
E é claro que palavras importam. Mas me parece um exagero monumental afirmar que, invariavelmente, a palavra “princesa” carrega submissão; ou que, toda vez que uma mulher é chamada de princesa, ela está sendo chamada de frágil e passiva, como as princesas dos contos de fadas.
Afinal, por que "princesa" não poderia remeter também a figuras como Zahra Khanm, de coragem, agência e fora de padrões estéticos ocidentais? Testemunhei até gente defendendo que o termo "tratamento de princesa" deveria ser trocado por "tratamento de rainha", como uma metáfora para o poder e autonomia da mulher.
Diante de tantas afetações, só me pergunto se precisamos mesmo recorrer a metáforas monárquicas para imaginar relações minimamente iguais.
No entanto, ao saber como o debate em torno do “tratamento de princesa” se transformou em trend, ficou claro por que a polêmica ganhou tanto espaço. O tema ganhou as redes quando a influenciadora Courtney Palmer publicou um vídeo que rapidamente viralizou.
No vídeo, ela falava, com orgulho, sobre o que considerava ser o verdadeiro "tratamento de princesa. Relatou que ao sair para jantar com o marido, não falava com a recepcionista, não pedia sua comida, não abria portas, não pagava contas.
Na lógica (duvidosa) dela, essa abdicação de gestos mínimos de autonomia era uma maneira de reforçar a feminilidade e, por contraste, reforçar a masculinidade do marido — confesso que sempre me soa suspeito quando me deparo com uma mulher que acredita que precisa 'reforçar' a masculinidade do parceiro, cuidar da sua autoestima 'testosterônica'.
Afinal, se, a masculinidade do parceiro é tão frágil que a cada saída em público a mulher precisa fazer tantos malabarismos para o companheiro se sentir mais masculino, me questiono o que será que acontece nos bastidores dessa encenação?
É claro que a fala de Courtney é problemática do início ao fim. A influenciadora tomou o conceito multifacetado de "tratamento de princesa" e o achatou até virar uma espécie de caricatura de opressão e submissão feminina.
Para ela, ser “tratada como princesa” significa abrir mão da própria autonomia em troca de migalhas de gentileza. Ela parece não diferenciar cuidado mútuo de tutela. Na lógica de Courtney, gestos de afeto, a exemplo de flores ou um jantar pago, se tornam correntes invisíveis. Mas é preciso lembrar que uma mulher pode apreciar esses gestos de carinho sem estar assinando um contrato de servidão.
Na fala da influencer — problemática de ponta a ponta — Courtney não está definindo o que seria "tratamento de princesa", mas está batizando com esse nome a própria versão atualizada do velho tradicionalismo. Vale lembrar que esse tradicionalismo tem encontrado terreno fértil nas redes sociais, repletas de "trad wifes".
Esposas em tempo integral, elas espetacularizam a vida doméstica como um conto de fadas, colocando-nos diante de um novo fenômeno: o neotradicionalismo digital, embalado por filtros e por uma estética encantadora de contos de fadas que disfarça rígidas hierarquias de gênero sob o verniz de romance e harmonia.
Vale lembrar, ainda, que Courtney é apenas uma influenciadora — ela não é a guardiã suprema do significado final de "tratamento de princesa". Para ela, o termo se confunde com a celebração da perda da própria autonomia; mas, para outros, evoca um luxo performático.
Para algumas mulheres, pode funcionar como um gesto de revanchismo, transformando o parceiro em súdito; e, para outros, nada mais é do que o mínimo aceitável em um relacionamento ou, simplesmente, de delicadezas cotidianas. O conceito "tratamento de princesa", portanto, é plural, com interpretações tão diversas como as relações que o reproduzem.
Assim, o debate digital sobre o “tratamento de princesa” não fala de princesas. Fala de nossa sociedade, que ainda não sabe diferenciar quando um cuidado é expressão de afeto ou um disfarce de poder; que ainda oscila entre a nostalgia patriarcal e a promessa de emancipação.
Que parece ter dificuldade de viver gestos de carinho sem transformá-los em arenas ideológicas (para ambos os lados). No fundo, o desconforto do debate não está nas flores, portas abertas ou cafés na cama. Mas em ainda não termos aprendido a amar sem reproduzir hierarquias, em ainda não sabermos que o amor mútuo pode (e deve) ser soberano.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.