Fake News ou triste realidade: 70% das mulheres com câncer são realmente abandonadas?

Foto: Shutterstock

A notícia que Preta Gil estaria sendo traída em pleno tratamento contra um câncer indignou internautas, que prestaram sua solidariedade. Não tenho o menor intuito de falar sobre o caso dela em si – desconheço sua realidade, se a infidelidade já era uma prática no casal ou se havia conivência com tais atos. Simplesmente não sou versada na vida de Preta Gil.

Desconhecemos as nuances do relacionamento da artista e, ainda assim, nos indignamos – e que bom! Isso aponta que ainda resta em nós a habilidade de nos transpormos à situação do outro, de imaginarmos como nos sentiríamos e, assim, entendermos o que pode ser o sofrimento alheio.

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Em outras palavras, ainda temos a habilidade de sermos empáticos – e isso me enche de esperança. Essa habilidade, portanto, nos permite considerar abjeta a situação, de entendermos que o sofrimento causado por um tratamento oncológico já é o suficiente, que pacientes, nestas condições, mereceriam ser poupados de outras dores. Entretanto, isso não está somente na esfera dos afetos, mas também da realidade computável.

Há pessoas compartilhando, nas redes, que 70% das mulheres diagnosticadas com câncer são abandonadas. Ao trazerem esse dado, afirmam que se trata de um levantamento da Sociedade Brasileira de Mastologia. Mas, felizmente, não encontrei o aludido percentual ancorado em nenhum estudo de metodologia confiável.

De todo modo, tal dado foi reproduzido, sem referências, por uma médica, membra da mesma Sociedade Brasileira de Mastologia, em uma entrevista para rádio carioca em 2019, e essa entrevista, por sua vez, foi reproduzida pela deputada federal Carla Zambelli em um Projeto de Lei, como se verdade fosse, sem conferir a veracidade da fonte.

Na entrevista, uma das participantes do programa possui falas que são baseadas em suas experiências pessoais, como, por exemplo, ao falar sobre a vida após o câncer, ela cita: “Depois do câncer arrumar emprego? Esquece! Não consegue, há um preconceito muito grande” – felizmente, não encontrei nenhum dado que comprovasse esta sua fala.

A participante continua, então, falando sobre a situação conjugal de pacientes oncológicas: “…além dos maridos, que a maioria vão (sic) embora”. É nesse momento que a médica presente, que faz parte da Sociedade Brasileira de Mastologia, mas não é sua representante legal, fala que “o índice é alto, mais de 70% das mulheres são abandonadas pelos maridos”. Pronto, essa fala foi suficiente para tomarmos tal informação como verdade.

Talvez eu mesma já tenha reproduzido esse dado, afinal, me senti contemplada por esta suposta estatística – de fato, me divorciei ao longo de um tratamento contra um câncer de mama. Entretanto, como acadêmica, fiz uma busca em diversos bancos de dados e não encontrei nenhuma pesquisa que respaldasse essa informação. Não conformada, apelei para o Chat GPT e nem mesmo a inteligência artificial conseguiu encontrar qualquer artigo científico que confirmasse a assertiva da médica.

São tempos fáceis para a propagação de fake news, e é necessário termos cautela com o que compartilhamos. Embora a afirmação mencionada pela médica seja amplamente difundida, ela não pode ser facilmente confirmada.

Entretanto, é válido ressaltar que há diversos estudos que comprovam que a qualidade do relacionamento pode ser afetada negativamente quando a mulher é diagnosticada com câncer, sobretudo com câncer de mama – um câncer que afeta sobremaneira a autoestima da paciente devido à perda de símbolos sociais de sua feminilidade, como os seios e cabelos.

Além disso, algumas medicações utilizadas durante o tratamento podem afetar diretamente a libido da paciente e a soma destes fatores podem levar à piora do relacionamento conjugal e, em alguns casos, até mesmo ao divórcio.

Talvez eu tenha apresentado esses dados não para “desmascarar” o argumento que muitos têm utilizado, baseado em estatísticas aparentemente sem fundamento, tampouco para alertar sobre os perigos das fake news, mas sim para enfatizar que não precisamos desses dados robustos para ter empatia pelo próximo.

Independentemente de ser uma mulher famosa, como Preta Gil, ou uma anônima, e independentemente de a estatística indicar 70% ou 2%, é doloroso pensar na facilidade com que a promessa "na saúde e na doença" desce pelo ralo. Bastava uma única mulher, seja ela quem fosse, para daqui sentirmos muito. No meio desse triste cenário, meu idealismo vibra pela certeza de que ainda somos capazes de sentir algo pelo outro, independentemente de estatísticas.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora

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