“O Corpo de Cristo Morto no Túmulo”: a pintura que há cinco séculos repercute no mundo cristão

Foto: Shutterstock

Um bom livro costuma nos levar muito além dos fatos narrativos. Não conhecemos apenas o destino das personagens, mas todo seu entorno, cultura, costumes e arte que compõem a ambientação da obra. Foi através do clássico Dostoievskiano, O Idiota, que descobri um quadro ao qual prestaria visitas todas as sextas-feiras santas seguintes em minha vida. Em uma determinada cena, o protagonista, Príncipe Michkin, uma figura cativante que, segundo o próprio autor, se configura no hibridismo entre Cristo e Dom Quixote, se depara com um quadro e comenta que, por causa dele, alguém ainda poderia perder a fé.

A curiosidade por tal afirmação foi tamanha que fui pesquisar sobre a pintura. Julgava ser exagero a fala da personagem, era preciso ver a obra com meus próprios olhos. O quadro ao qual Michkin se referia se chamava “O Corpo de Cristo Morto no Túmulo”, pintado em 1521, por Hans Holbein e, ao vê-lo, um silêncio pesou por aqui, acreditei entender o sentido por trás do que o protagonista falou. O impacto que tive ao me deparar com esta obra pela primeira vez é indelével em minha memória.

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Jamais havia visto representação similar de Cristo. Ele está morto, mas não na cruz, como costumeiramente nos deparamos na iconografia cristã. Cristo está deitado, pintado no tamanho real de um túmulo. Os pés e as mãos guardam as marcas do que sofrera, a chaga lateral se evidencia. Seus lábios, de quem teve sede na cruz, estão secos. Sua boca e Seus olhos ainda estão entreabertos, a morte acontecera há pouco. Ele está sozinho, a solidão sobressai, ninguém vela o corpo cadavérico, nu (salvo na genitália), do Filho de Deus. A verdade da cena fere a nós cristãos, aponta nossa impotência diante das injustiças que até Deus Filho sofrera.

Não é à toa a fala de Michkin: o impacto desta obra parece também ter sido indelével para Dostoiévski, que a eternizou no livro O Idiota. Isto porque, na primeira vez que Dostoiévski se deparou com o quadro de Hans Holbein, foi no museu da Basileia, na Suiça. O escritor estava acompanhado de sua esposa, Ana, que estava grávida e, por ter ficado impressionada com a pintura, achou melhor ir a outra sala do museu.

Entretanto, após 20 minutos, seu esposo ainda não fora se juntar a ela. Então, Ana retorna à sala onde o quadro estava e encontra seu marido, Dostoiévski, ainda diante da obra, como se estivesse preso nela. Sua expressão era a mesma que ele portava nos primeiros minutos de um ataque de epilepsia – ataques que, infelizmente, lhe acompanharam por toda sua existência. Ana, se dando conta da possibilidade de uma crise epiléptica do marido, devagarinho, o pegou pelo braço e o levou para longe do quadro. Segunda ela, somente assim, aos poucos, o marido se acalmou e voltou a si.

Ana relata que o quadro deprimiu Dostoiévski: ele se sentiu derrotado diante da imagem que viu. Dostoiévski era um exímio conhecedor da Bíblia, em seus anos de trabalho forçado na Sibéria, o único livro que sempre lhe fora acessível era a própria Bíblia. Cristão devoto, sabia de cor o itinerário da paixão de Cristo retratado nos evangelhos, sua profícua imaginação já o teria feito imaginar a dolorosa cena de morte diversas vezes, mas foi ao ver “O Corpo de Cristo Morto no Túmulo” que se sentiu atravessado pela Sua dolorosa paixão, não havia palavras que pudessem expressar a condição que relegaram ao Filho de Deus.

Para os mais de 2,5 bilhões de cristãos ao redor do mundo, hoje é dia de recolhimento, somos convidados a refletir na Sexta-Feira Santa, sobre sua dolorosa paixão, palavra cuja etimologia remente a sofrimento. Esta cena dolorosa não é o capítulo final da história cristã, mas é chave interpretativa para compreendermos que as dores da cruz antecedem a redenção – algo ressaltado simbolicamente nas mais diversas personagens de Dostoiévski.

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