Há quase 20 anos, caiu em minhas mãos um livro sobre as pessoas mais perversas da história da humanidade e, infelizmente, com frequência, me recordo da introdução da obra. Nós, leitores, éramos advertidos que, naquele livro, encontraríamos os mais diversos tipos de pessoas entre os perversos: homens e mulheres de épocas diferentes, com posicionamentos políticos diferentes, de esquerda e de direita, de religiões diferentes.
Havia um denominador comum entre todas aquelas pessoas tão distintas entre si, mas, aparentemente, tão inclinadas ao mal: todos os mais perversos da história possuíam algum tipo de poder.
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Foram necessários alguns anos para que eu entendesse que não existe somente um tipo de poder. Nossas relações cotidianas estão imersas em complexas teias de poder, ainda que não nos demos conta. Há poderes facilmente identificáveis, como aqueles que vêm com a posse de muito dinheiro ou de um alto cargo na política.
Há poderes, entretanto, que emergem do cotidiano compartilhado. Aqueles poucos que convivem conosco no dia a dia conhecem nossas vulnerabilidades, nossos pontos fracos e, infelizmente, podem fazer mau uso disso. Há poderes que vem com o conhecimento intelectual, rotineiramente utilizado para constranger e apequenar o outro que ainda trilhou esta trajetória.
Há poderes que nascem das relações parentais - os pais são figuras de poder e autoridade para os filhos em boa parte da vida. Há poderes que se legitimam por um suposto conhecimento do transcendente – palavras de padres, pastores e líderes religiosos parecem ter peso dois para seus fiéis.
Há ainda aqueles que chamo de detentores do pequeno poder, como, por exemplo, aquelas pessoas que podem facilitar ou dificultar nosso acesso a prédios, a documentos em repartições públicas, filas nos aeroportos etc.
É inegável: existem podres poderes em nossas relações cotidianas. É amplamente conhecido o fato de que a maioria dos casos de abusos sexuais envolvendo crianças são cometidos por familiares e conhecidos, ou seja, adultos que possuem certo poder sobre a criança. Infelizmente, também não é novidade os escândalos sexuais envolvendo líderes religiosos, das mais diversas vertentes – e, como sabemos, eles também usufruem de poder de influência entre seus fiéis.
O lamentável episódio de Dalai Lama nesta semana, no qual uma criança, após um abraço prolongado com o líder, é demandada por este que o beije na boca que depois arremata com um “agora, chupe minha língua”, evidencia o podre poder. Diante do absurdo da cena e do visível constrangimento da criança, presenciamos adultos rindo,inertes, naturalizando o abominável. Não há dúvidas de que este líder possui poder não somente em relação à criança como em relação a todos que o cercavam.
Diante da repercussão do vídeo, houve quem colocasse na mesa argumentos culturais. O relativismo cultural foi utilizado para defender o indefensável. Vale lembrar que desde os horrores da Segunda Guerra, há um acordo mundial, por meio de da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que limita o relativismo cultural.
Toda cultura tem direito às suas manifestações; porém, toda manifestação cultural possui um limite claro: a dignidade do outro.
Coagir uma criança a beijar um líder religioso na boca, prolongar-se no abraço e demandá-la que chupe sua língua, certamente, fere a dignidade da criança – não há cultura que se sobreponha a isto.
Alguns, talvez, em negação de tamanha atrocidade, argumentariam uma possível senilidade de Dalai Lama. Assumo que pensar nessa possibilidade esmaga um pouco menos o meu coração. Entretanto, se este for o caso, o que seria facilmente constatável por consultas médicas que, creio, Dalai Lama tenha acesso, que poder é este que impede as pessoas de o afastarem do cargo, uma vez que não está mais apto a ocupá-lo?
Nesta semana, para além do caso de Dalai Lama, nos deparamos com as denúncias de assédio contra o renomado sociólogo e professor catedrático, Boaventura de Sousa Santos. Nos relatos também se evidencia o suposto mau uso do poder deste sobre aquelas que lhe denunciam. A Universidade e a Espiritualidade são meus pontos pessoais de esperança, é amargo ver ambos em perigo por mau uso de poder.
Neste exato momento, em algum lugar, uma criança é abusada por um parente que detém um poder sobre ela; uma mulher é vítima de violência doméstica por um marido que exerce um poder psicológico e, provavelmente, financeiro, sobre ela; alguma universitária ri sem graça para o professor 30 anos mais velho sob pena de não progredir na carreira acadêmica; algum servidor coloca um processo dentro de uma gaveta, ele tem poder para isso; um trabalhador cala diante das violações de seus direitos trabalhistas, pois lhe parece impossível lutar contra o poder do patrão.
Não posso afirmar que o poder, inexoravelmente, corrompe, mas não há dúvidas que ele fornece os meios necessários para que o mal seja implantado, para que a impunidade se perpetue.
Já se passaram quase 20 anos e parece que o denominador comum entre os mais perversos em nosso cotidiano é o mesmo daqueles mais perversos da história: possuem algum tipo de poder.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora