“Clientes louvam a Deus em supermercado”; “Vídeos de clientes cantando louvores em shopping do Rio de Janeiro viralizam”. Essas foram as manchetes de duas notícias que vi circularem na semana passada.
Essas manchetes não geram estranhamento, os leitores parecem não perceber que há algo questionável em seus títulos. Nossa falta de estranhamento denuncia como estamos presos em nosso próprio umbigo, em nossas próprias crenças. As notícias não explicam a que Deus louvam, como se fosse óbvio que se louvam é ao Deus cristão.
Veja também
Por herança familiar, patrimônio cultural e escolha pessoal, também louvo ao Deus cristão e, talvez, por isto entenda que Ele prezou sobretudo pelo livre arbítrio, não obrigou ninguém a crer Nele. Por isso, não posso normalizar acharem ser possível crer em somente um Deus, o meu.
Por outro lado, uma estátua de jardim de Baphomet, uma figura simbólica retratada com chifres, asas de morcego e cabeça de bode, associada a diversas tradições esotéricas (algumas tidas como “satânicas”), causou uma enxurrada de comentários revoltosos e viralizou nas redes sociais. Isto me levou a uma série de reflexões...
Apesar da maioria dos brasileiros se declararem cristãos, a maior parte do mundo não é cristã. Dos 8 bilhões de habitantes do mundo, mais da metade, 5,5 bilhões, não louvam o Deus que eu louvo e isso merece ser assimilado e respeitado.
Para 2,5 bilhões de pessoas, Deus é sinônimo de Deus Cristão. Mas, para 1,5 bilhões, quando se fala em Deus, se pensa em Alá e não em Cristo. Para mais de 1 bilhão de pessoas não há sentido nomear um Deus, pois são ateus ou agnósticos.
Para outro bilhão de pessoas, não faz sentido falar em Deus no singular, afinal, praticam o hinduísmo e contam com um número incontável de deuses. Isso sem falar dos mais de 400 milhões de budistas, de adeptos às mais diversas religiões de matrizes africanas, às pessoas dedicadas ao zoroastrismo, ao taoismo entre tantas e tantas outras.
Tampouco a religião cristã é a mais antiga. A religião egípcia antiga, com deuses, hoje, quase desconhecidos por nós (como Ísis, Amon-Rá, Anúbis etc), por exemplo, foi cultuada por mais de 3.000 anos, bem mais que os 2.000 anos de cristianismo.
O hinduísmo, que é considerada uma das religiões mais antigas do mundo, remonta há mais de 4.000 anos. Portanto, nem mesmo a “tradição” dá suporte à ideia de que o Deus cristão é o “único”.
Mas nosso narcisismo é tamanho que ignoramos tudo isso e achamos, em nosso pedestal, que o mundo inteiro compartilha exatamente das mesmas crenças que nós. Ignoramos a fé de 5,5 bilhões de pessoas e noticiamos – “louvam a Deus” – como se fosse óbvio se tratar do Deus cristão.
Não estranhamos o fato de músicas cristãs serem entoadas em colégios, na televisão aberta, na rádio e em festivais abertos a milhares de pessoas. Tampouco questionamos que uma estátua cristã gigantesca, no Rio de Janeiro, em um país laico, seja considerada um dos cartões postais mais famosos do país e uma das “sete maravilhas do mundo moderno”.
Entretanto, quando um jovem no metrô canta o seu louvor, noticiam que ele “canta ponto de Exu” e sua fé é o suficiente para chocar e viralizar. Esquecemos de nos questionar por que noticiam sobre “louvores” em shoppings e supermercados como algo virtuoso, mas, por outro lado, noticiam sobre um baphomet de jardim como uma ofensa e um vício moral?
Questiono-me por que naturalizamos que dinheiro público seja utilizado para ornamentar cidades com estátuas de Maria (a quem tenho devoção pessoal), mas quando uma mãe de santo, em sua própria casa (e, portanto, propriedade privada) coloca uma estátua de Baphomet, isso se torna motivo de frisson e de ampla repercussão nas redes sociais.
A intolerância religiosa não existe somente quando discursos de ódio se fazem presente, quando o desrespeito é escancarado. A intolerância religiosa existe quando minhas crenças se tornam as únicas possíveis, quando ignoro 5,5 bilhões de outras possibilidades que não acreditam no mesmo que eu.
Para combater a intolerância religiosa, e nossa cegueira cotidiana, é preciso lembrar que se declarar cristão não quer dizer ser cristão, agir como Cristo, respeitando o livre arbítrio do próximo. Conheço muitos católicos, muitos evangélicos, mas pouquíssimos cristãos.
Talvez não devamos esquecer que, como bem explica a famosa frase atribuída a Shakespeare, “até o diabo pode citar as Escrituras quando lhe convém.”.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora