Em busca da saudade perdida

É o amor gratuito, que não me cobra nada em troca, que constitui minha primeira saudade

Foto: Shutterstock

Hoje é dia da saudade. Quem já sentiu saudade sabe o peso da presença da ausência. E, certamente, compreende na pele como a saudade comporta opostos – riso e choro orbitam nossos pensamentos saudosistas.

Por ocasião da data, fechei os olhos e procurei a saudade mais escondida. Não quero, agora, saudades que martelam insistentes, nem de tempos recentes. Sei que também não busco saudade da pessoa que partiu, nem da adolescência animada. Claro, sinto saudades da época que não tinha boletos para pagar e gozava de certa autonomia - entretanto, o que quero é adentrar na trilha da minha primeira saudade.

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Sequências de imagens desordenadas se justapõem: a cadelinha Ternura; meu avô materno assistindo fitas VHS de balé; as minhocas do quintal do avô paterno; o banco de trás do Chevette de minha mãe; a areia do parquinho da escola; os óculos do Chaves para beber refrigerante; os papeis para colorir no jardim 1...

Não é nada disso que busco. Tento voltar ainda mais no tempo. Felizmente, sou interrompida pelo meu filho de 8 meses – algo se encaixou por aqui. Meu bebê é risonho, tem olhos de encantamento para seu entorno, já gargalha alto. E, estranhamente, ele não terá saudade de absolutamente nada do que vive hoje; eu terei, já tenho.

Meu pequeno não vai se lembrar dos seus dias de pura brincadeira, do seu riso alto, da alegria ao tocar novas texturas. Ele jamais vai lembrar que alguém zelou por ele nessa fase da vida, que ele não sabia andar, e que isso não era problema, porque sempre tinha alguém para carregá-lo; ele não vai lembrar o que é ser amado, nos atos mais simples, 24 horas por dia e, por causa disso, não sentirá saudades.

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Em mim, seus dias, cheios de detalhes tão pequenos, estão inscritos, terei saudades. Porque lembrarei destes dias, nossa relação jamais será de igual para igual, nem quando ele for um “homem feito”. O que se tornará saudades agudas para mim, será esquecimento para ele. Meus atuais atos de amor, ainda que sejam inúmeros e intensos, não serão sequer lembrados.

É preciso saber: se faço o que faço como mãe é por amor, escolha e obrigação moral. Ele não me deve nada. Ele não me deverá nada. Estes meses tão intensos viverão e morrerão em sua história sem deixar vestígio algum, muito menos, saudade.

Eu terei saudades de meu bebê, terei saudades de ser a mãe de um bebê. Espero ter sabedoria para lembrar disso lá na frente, principalmente quando for tentador dizer “olha tudo o que eu já fiz por você” (Tenho um verdadeiro pavor de me tornar uma mãe-mártir - já falamos sobre elas por aqui).

Em algum lugar no tempo e no espaço, eu também fui cuidada, fui amada em atos 24 horas por dia. Eu não sabia andar, mas não me faltou colo. Não lembro, mas sei que zelaram por mim, me alimentaram, se preocuparam genuinamente se eu estava bem. Não lembro, mas sei que fui atravessada por esse afeto. São registros inconscientes que constituem esse quebra-cabeça que é (o) ser humano. Creio que sou a saudade de alguém. E tenho a certeza de que é exatamente esse amor gratuito, que não me cobrava nada em troca, que constitui a minha primeira saudade.



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