São tempos difíceis para nós, profissionais da Saúde Mental. Não digo isto pela nossa enorme demanda diária, tampouco me refiro aos dados epidemiológicos alarmantes que denunciam uma sociedade adoecida, hipermedicada e pouco terapeutizada. Neste exato momento, penso em nosso desgaste ao nos depararmos, diariamente, com a banalização de diagnósticos.
É notória a necessidade social (e midiática) de diagnosticar qualquer pessoa. Não consegue ler um livro? Deve ser TDAH. Está triste com um término de relacionamento? Depressão. Está de ‘saco cheio’ do trabalho? Burnout. Tem algum trejeito? TEA. Está pensando na prova importante que fará? Ansiedade. Não se importou com os sentimentos da namorada? Psicopata* (sic – oficialmente “Transtorno de Personalidade Antissocial”) ou Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN).
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Creio que este último seja o diagnóstico mais disseminado nas redes sociais: preferiu a si que aos outros? Narcisista. Teve más condutas? Narcisista. Não concorda comigo? Narcisista. Não cumpriu minhas expectativas? Narcisista.
Curiosamente, na onda de (auto)diagnósticos, já vi muitas pessoas se autodiagnosticarem com TDAH, ansiedade e depressão, mas jamais vi alguém se autodiagnosticar com Transtorno de Personalidade Narcisista. Entretanto, sempre há algum ex-companheiro ou alguma mãe sendo “diagnosticados” com TPN na internet.
A conta não fecha: os inúmeros “diagnósticos” em feeds de redes sociais não correspondem aos dados epidemiológicos em Saúde Mental - estudos recentes apontam uma prevalência de TPN em torno de 2% da população. Em outras palavras: é impossível que tantos ex-companheiros e tantas mães possuam tal diagnóstico.
Atualmente, a comunidade científica reconhece 10 tipos de transtornos de personalidade (TP) - entre eles, o TP Narcisista - e diagnóstico de algum tipo de TP é bastante complexo.A “investigação” coleta dados de longa data, uma vez que os traços que compõem um TP costumam ser perceptíveis, no mínimo, desde o início da vida adulta. Ou seja, não se trata de algo transitório ou pontual. Diz, na verdade, de um modo de ser e estar no mundo que desvia bastante das expectativas da nossa cultura.
A propósito, questiono àqueles que recentemente foram tão rápidos em “diagnosticar” com TPN a mãe de uma jovem atriz: ainda que venham a ser comprovadas ações duvidosas em relação ao patrimônio da atriz em questão (situação que conhecemos apenas um lado da história), em que momento a sede por dinheiro desvia das expectativas de nossa sociedade adoecida?
TPN é algo muito mais complexo que nossos feeds podem enxergar - não cabe em clichês de mães “duronas”, “mandonas”. Infelizmente, muitas mães que educam com “mão ferro” são rapidamente “diagnosticadas” com TPN por leigos on-line.
O público parece até mesmo esquecer que há outras configurações de mães que podem ser muito mais desafiadoras para conviver, como as “mães mártires” que, escondidas atrás de suas máscaras de benevolência e sacrifícios, infelizmente, incutem nos filhos sentimentos de culpa, lembrando-os, em qualquer oportunidade, de sua saga de sacrifícios em prol dos filhos, alimentando neles uma dívida de gratidão impagável.
A “mãe mártir” costuma atribuir aos filhos questões de sua própria responsabilidade, por exemplo: “não me separei por sua causa”; “não desenvolvi na profissão por sua causa” – esse discurso pode se repetir ainda que os filhos já sejam crescidos e que a lógica desafie, por vezes, os argumentos.
Entretanto, seus filhos jamais podem lhes criticar. Se manifestam alguma opinião que lhes contrariem, ficam sob pena de grandes chantagens emocionais, retaliações e silêncios dolorosos.
Filhos de “mães mártires” se tornam reféns dos afetos de suas mães, foram educados para acreditar que estão sempre em dívidas com elas – alguns filhos se sentem constrangidos até em seguir a própria vida, com medo de como isso pode reverberar na mãe.
Assim, mais proveitoso do que diagnosticar mães como narcisistas por desavenças com seus filhos ou silenciar diante da “mãe mártir”, é lembrarmos que mãe também é gente.
Muitos filhos não conseguem enxergar com clareza as mães que possuem - passam uma existência imersos em culpas, em dívidas de gratidão, emaranhados em uma teia de chantagens emocionais, simplesmente por esquecerem que suas mães também são gente.
E, como todos sabemos, “gente” é uma categoria ampla: há pessoas boas e há pessoas de comportamentos duvidosos – que por vezes, são mães.
Entender que “mãe é gente” é tirar a mãe do pedestal, compreendendo que, gente como a gente, a mãe também terá falhas (não necessariamente um diagnóstico). Compreender que “mãe é gente” é tirar dela o peso de uma suposta perfeição, cultivando, assim, um olhar misericordioso e compassivo para os eventuais erros.
Por outro lado, entender que “mãe é gente” é também compreender que algumas mães possuem fortes falhas de caráter e que é preciso se proteger, afinal, maternidade não traz consigo o passaporte para a santidade.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora