Mais de duas décadas me separam do início de minha adolescência. Como a maioria dos adolescentes, estava sempre rodeada de colegas, mas experimentava certa solidão. Não encontrava em meus pares, nem em mim mesma, palavras que soubessem descrever meus afetos e pensamentos. O indizível se tornava um grande emaranhado que, por vezes, apertava o peito e, tantas outras, transbordava de modo inadequado - confirmando que eu era apenas uma adolescente.
Foi nesta época que a literatura me acolheu. Conheci personagens que me humanizaram, frases que me consolaram e enredos que me convocaram a reflexões, até então, inimagináveis. Já não consigo resgatar o nome de todos os autores que, de algum modo, me proporcionaram alívio de meus dramas adolescentes, mas sou grata a eles pela companhia e respiros naqueles tempos de turbulência.
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No entanto, alguns escritos me atravessaram de tal modo que deixaram marcas indeléveis. Não foram livros de alívio, foram livros formativos, a eles devo parte de minha matéria viva. São livros que foram revisitados por mim em diferentes idades, sobre os quais tive diferentes entendimentos a cada leitura e que, a cada novo encontro, me ensinavam algo.
Livros formativos são aqueles que nunca se esgotam: a cada leitura, nos surpreendem. É difícil esquecer o primeiro contato que temos esse tipo de obra – e ainda recordo com clareza da sensação de êxtase ao ler, aos 15 anos, A Insustentável Leveza do Ser, do escritor tcheco Milan Kundera, falecido nesta semana, 12 de junho, aos 94 anos.
Tampouco consigo listar tudo que aprendi com Kundera. Foi ainda adolescente que ele me ensinou que a “compaixão – na hierarquia dos sentimentos, é o sentimento supremo”; em seus escritos encontrei consolo ao aprender que “o que não é consequência de uma escolha não pode ser considerado nem mérito nem fracasso” e, muito antes de me formar psicóloga, Kundera me ensinou sobre uma das grandes causas dos abismos entre as pessoas: o “léxico das palavras mal-entendidas”.
Por meio de um casal fictício, pela primeira vez, entendi o óbvio: as palavras possuem muito mais significados do que as definições que os dicionários comportam.
E, de fato, ao longo da vida, atribuímos às palavras sentidos que transcendem a definição presente no dicionário. Por exemplo, podemos encontrar a definição de “cuscuz” no dicionário, ele nos informará que é um substantivo masculino, que o termo se refere a uma comida composta por sêmola de trigo; mas, cuscuz não é ali descrito como “casa de vó” e, para mim, é o maior significado da palavra cuscuz. São essas cargas semânticas, formadas por nossas jornadas pessoais, em nossos diálogos e vivências, que fazem grandes conexões ou abismos surgir entre nós.
É preciso, portanto, profunda sensibilidade, algo que não faltava à Kundera, para nos ensinar tanto por meio da ficção. A marcante delicadeza artística de Kundera vinha de berço - não somente pelo seu talento nato, mas pelo ambiente no qual se desenvolveu.
O autor cresceu em meio à arte, seu pai era músico, seu tio, escritor e a atmosfera artística de seu microcosmo familiar, certamente, o influenciou em sua carreira literária. O contexto macrossocial no qual viveu, na então Tchecoslováquia, também exerceu influencia direta no caminho trilhado pelo escritor. Como muitos adolescentes de seu tempo, Milan Kundera se filiou ao partido Comunista Tchecoslovaco. Entretanto, seu senso crítico e posicionamento lhe custaram a expulsão do partido comunista (em duas ocasiões), a perda do seu emprego de professor e desaguaram em um exílio na França, em 1975.
Por questões políticas, Kundera se tornou persona non grata em seu país de origem. Por anos, sua obra foi banida de sua terra natal e ao publicar O Livro do Riso e do Esquecimento, em 1979, no qual tecia críticas ao presidente tchecoslovaco, Kundera teve sua cidadania tchecoslovaca revogada pelo partido comunista. Somente em 2019, quando já estava com 90 anos, Kundera, que acabou se naturalizando francês, recebeu sua identidade tcheca novamente, assim como um pedido de desculpas do Governo de seu país.
Com a notícia de sua partida, Kundera reafirma sua humanidade. Ele vem recebendo homenagens nas mais diversas línguas e, como não poderia ser diferente, agradeçamos por sua existência e, sobretudo, por sua produção literária. É a ela que cabe sobreviver além do autor. É por meio dela que a minha e as futuras gerações poderão aprender que, dentro nós, há leveza e peso, há sombra e luz, há sorte e mérito, há esperança e desesperança – tudo misturado e remexido. Afinal, somos paradoxos bípedes; somos formados por uma matéria ávida a se tornar imortal, imutável, insustentavelmente leve. Por aqui, lhe desejo uma boa morte e vida longa à sua obra. A Milan Kundera, que sempre revisito tirando-o e retirando-o da estante, digo-o do fundo da alma: até breve e muito obrigada.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora