Elis Regina, Belchior e a inteligência artificial: um paradoxo ético

Legenda: Para cada opinião “certeira” de quem se dispôs a comentar sobre o assunto, surgem contrapontos que avivam o paradoxo ético que esses temas evocam
Foto: Reprodução

Em “Volto Já”, o primeiro episódio da segunda temporada da famosa série “Black Mirror”, uma poderosa ferramenta de Inteligência Artificial recria a personalidade de uma pessoa morta – um ente querido que morre bruscamente em um acidente. A partir de um vasto compêndio de dados, a IA consegue emular o modo de ser dessa pessoa falecida, inclusive suas feições, piadas, pensamentos, ideologias, voz e até a forma peculiar de escrever suas mensagens de texto. Em 2013, quando esse episódio ficou disponível, esse cenário parecia completamente distópico.

Apenas dez anos depois, quase em tons proféticos, observamos essa distopia se tornar realidade. A tecnologia chamada de deepfake, hoje, já permite recriar, por meio de inteligência artificial, as feições, os trejeitos e até a voz de pessoas, vivas ou mortas.

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Recentemente, inclusive, o famoso beatle Paul MacCartney divulgou que a voz de John Lennon está sendo emulada pela inteligência artificial e será usada, futuramente, em uma música. O deepfake não só é uma realidade factível, como já vem sendo utilizado em larga escala.

Neste contexto, um assunto dominou os noticiários, as colunas de opinião e os comentários em redes sociais nesta semana: a propaganda de uma famosa montadora de carros que recriou Elis Regina digitalmente, por meio de inteligência artificial, fazendo-a contracenar com a filha, Maria Rita, que tinha apenas 4 anos de idade quando a mãe faleceu. Ambas surgem cantando, em veículos diferentes, a música “Como Nossos Pais”, de Belchior, cuja interpretação é uma das mais famosas da carreira de Elis Regina.

Diante da perplexidade gerada pelo impacto visual da propaganda, as opiniões se dividiram fortemente. Enquanto uns afirmaram ter se emocionado, outros suscitaram dilemas éticos.

Essa mesma montadora foi uma conhecida apoiadora da ditadura militar no Brasil, tendo inclusive firmado um acordo 36 milhões de reais para ressarcir as violações aos direitos humanos cometidos durante o período.

Tanto Elis Regina, como Belchior, foram opositores do regime, de modo que muitos levantaram a possível hipocrisia da propaganda – a qual, inclusive, se utiliza justamente de uma música que contém uma crítica à opressão e ao consumo desenfreado.

Essa miríade de afetos e contradições nos suscita muitas perguntas e pouquíssimas respostas.

Afinal, o que significa emular as feições, os movimentos, as ideias e até a voz de alguém que já faleceu em um contexto que, se vivo, provavelmente se recusaria a atuar? O que significa utilizar a imagem de alguém falecido em propagandas? E a quem cabe julgar se a própria família de Elis Regina e Belchior, no fim das contas, certamente autorizaram a reprodução de sua imagem e música para a propaganda de um veículo?

Para cada opinião “certeira” de quem se dispôs a comentar sobre o assunto, surgem contrapontos que avivam o paradoxo ético que esses temas evocam. Para cada resposta, mil paradoxos nascem. Mas, se há algum refúgio possível que nos ajude a dissolver esse nó, talvez esteja em um passado relativamente recente.

O filósofo Walter Benjamin, em seu famoso ensaio “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica” de 1936, sentencia que a disseminação de técnicas de reprodução em massa, como a fotografia e o cinema, gerava um impacto irreversível sobre como a arte era produzida e valorizada na sociedade moderna.

A reprodução técnica (como a venda de milhares de cópias de uma fotografia ou de um filme, por exemplo) terminava por esvaziar o sentido da arte, desconsiderando que sua existência estava ligada a um contexto histórico específico.

Esse pensamento de Benjamin é profundamente atual, muito embora nem em seus sonhos ele pudesse ter previsto o que, hoje, estamos vivenciando. De todo modo, o aludido filósofo nunca negou um fato incontestável: que a reprodutibilidade técnica era algo surgido da vontade humana, é uma produção essencialmente humana.

Neste contexto, se os deepfakes, o chatGPT, e as centenas de programas que se utilizam de inteligência artificial são frutos da vontade humana, então não seriam, portanto, direcionados a suprir necessidades humanas? Como Benjamin nos aclara, desde os primórdios do Século XX se debate sobre essas “contradições” entre a utilização da arte em um contexto político e histórico diferente daquele que em que essa obra de arte surgiu.

Não há nada de novo no front, portanto, em retratar Elis Regina, Belchior e “Como Nossos Pais” em um novo contexto, por mais contraditório e anacrônico que seja. O ser humano já fez isso e, provavelmente, o fará por muito tempo.

O que há de relativamente universal nessa discussão é: a quem cabe julgar a experiência de uma filha de se ver cantando uma famosa canção ao lado da mãe que nunca conheceu? E se essa oportunidade surge, justamente, dentro de uma ocasião utilitarista – inerente ao mundo capitalista – em rentabilizar em cima dos direitos de imagem? Novamente, repito: a quem cabe julgar?

À medida que adentramos nessas dimensões éticas, suscitadas pelas distopias reais, as contradições surgem. Não nos cabe resolvê-las, embora seja muito válido problematizá-las, pois é justamente essa armadilha que o debate sobre a inteligência artificial nos suscita: a cada “resposta”, novos e mais profundos paradoxos éticos irão surgir. Afinal, muitos dos que vem criticando a utilização de deepfakes em larga escala, aparentemente, não observam problema algum em se valer de uma ajudinha do chatGPT quando precisam.

Talvez, a maior contradição de todas, é negar que a inteligência artificial – e os seus paradoxos éticos – já não são mais distopias, mas uma pura e incontornável realidade.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora