Os ataques a Adriana Gerônimo na Câmara de Fortaleza e a paz que as mulheres não conseguem ter

"Pelo menos serviu, já baixou o tom de voz dela, é alguma coisa já, já baixou o tom de voz dela", disse Adail Júnior, ex-vice presidente da Câmara

Legenda: Adriana Gerônimo é co-vereadora de Fortaleza, eleita em mandato coletivo
Foto: Érika Fonseca/CMFor

Um vereador de Fortaleza usou a tribuna da Câmara Municipal, nesta quarta-feira (29) com um dos interesses, segundo ele mesmo, de colocar uma vereadora "no lugar dela". O "interesse" surgiu após a parlamentar, que integra a oposição, fazer críticas sobre o transporte coletivo na Capital, sem nenhuma menção ao vereador. Como, então, essa discussão descamba para a tentativa de silenciar uma mulher?

Logo no começo da sessão na Câmara, a vereadora Adriana Gerônimo, do coletivo Nossa Cara, do Psol, fez discurso sobre a apresentação de um requerimento para que a Prefeitura de Fortaleza reveja o uso de catracas duplas nos ônibus – medida adotada há quase uma década, sob a justificativa de aumentar a segurança do transporte. Ela citou prejuízos ressaltados por usuários com bolsas, com crianças, dentre outros, e elencou também críticas que não são novidades no debate, como a falta de ar-condicionado e a redução da frota em finais de semana.

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Até aí mais um dia comum no parlamento, até o vereador Adail Júnior, do PDT, subir à tribuna para fazer a defesa da gestão municipal e começar a disparar críticas pessoais à vereadora e ao partido dela.

"Vossa excelência deve ter muitos anos que não anda no transporte coletivo. (...) É fácil não usar e vir à tribuna como se... Eu fico pensando: de qual cidade essa senhora está falando do transporte coletivo? Não pode ser da cidade que ela é vereadora, a cidade que mais melhorou a mobilidade urbana em dez anos. (...) É um eco que vai chegar onde? Só nos psolistas. Só pode ser missão partidária, não é o sentimento do povo", disse Adail.

A irritação com a parlamentar aumentou após, durante a troca de oradores, a vereadora usar o microfone para dizer que o pedetista havia deturpado a fala dela.

"Eu sou vereadora de Fortaleza. Já o vereador Adail parece que vive no 'mundo encantado do vereador Adail'", disse Adriana. A fala desencadeou um rápido bate-boca nos microfones, interrompido pela vereadora Cláudia Gomes, que presidia a sessão.

Ao retornar à tribuna, o vereador acusou a parlamentar de se esconder atrás do gênero e de desconhecer o regimento interno, fazendo críticas a ele sem ter pedido permissão de fala à presidência. "Tem que parar disso de vereador se escondendo atrás do seu sexo, da sua opção, aqui somos todos vereadores", disse, minimizando a atuação da vereadora.

"Vá baixando a sua bola em relação ao meu parlamento, ao meu mandato, vá fazendo seu mandato, vossa excelência não tem moral para estar me dando carão, nem chamando a atenção em microfone, não tem moral, nem passado, nem história", atacou Adail, pedindo que ela não use a tribuna "para denegrir a imagem do governo".

Adriana rebate

"Nunca vou me calar diante de ataques, tenho sim passado e história, a Nossa Cara tem passado e história e isso nos fez chegar aqui através das mãos do povo de Fortaleza", rebateu Adriana, lembrando que o vereador já teve de pedir desculpas a ela em outros episódios de ataque na Câmara.

"Sempre subo à tribuna analisando o mérito das questões. Quando fui fazer a defesa dos ônibus, que nos chegou pelo povo de Fortaleza, em nenhum momento citei que eu estava lá porque eu era mulher ou era LGBT. Quem disse isso foi o verador Adail, mas eu não me coloquei nessa questão, não preciso dizer isso porque sou mulher, sou uma mulher negra, sou uma mulher LGBT e isso transpassa a minha vida onde eu estiver", pontuou a vereadora.

"O tom de voz dela já mudou"

Adail não deu por encerrada a questão e voltou à tribuna para atacar a vereadora, em momento no qual Adriana não estava no plenário.

"Pelo menos serviu, já baixou o tom de voz dela, é alguma coisa já, já baixou o tom de voz dela, a desculpa vou ficar esperando", afirmou, sendo parabenizado pelo posicionamento pelo líder do Governo, vereador Carlos Mesquita (PDT).

"Queria que ela estivesse aqui pra eu dar um 'à parte' a ela, pra ela rebater o que eu tô dizendo, se é mentira ou verdade. Mas eu fiquei feliz, pelo menos no primeiro (discurso), pode ser que no segundo, no terceiro, no quarto, botando ela no lugar dela, ela fique realmente no lugar dela, se preocupe com o parlamento dela, se esqueça do meu parlamento", encerrou Adail, usando palavras que deixaram claro porque o discurso da vereadora incomodou para além de uma crítica habitual à gestão.

Como tantas outras mulheres, Adriana teria "um lugar dela". E que lugar é esse? O vereador não diz, mas não é novidade para ninguém que o lugar em que as mulheres são há muito tempo colocadas é aquele distante dos espaços de voz e de poder. O avanço contra essa cultura machista incomoda.

Há uma semana, três deputadas estaduais do PT no Ceará sofreram ataques pessoais e ao desempenho profissional por um vereador da Câmara Municipal de Russas. Nem bem o assunto cessou, vê-se novamente uma mulher ter seu trabalho político diminuído por um colega de parlamento que, no mínimo, deveria ser exemplo de trato social.

Uma discussão que se repete tantas vezes sobre problemas da cidade em qualquer parlamento, quando envolve uma mulher política, não pertence ao mesmo lugar dos discursos de homens que em ampla maioria ocupam esses espaços. Por isso descamba para ataques numa proporção que um igual, do sexo masculino, provavelmente não seria obrigado a ouvir.

"Falácia do espantalho"

O episódio, pouco depois, repercutiu em outra casa legislativa, na estadual. Correligionário de Adriana, o deputado Renato Roseno prestou solidariedade à vereadora em discurso na tribuna.

"O vereador Adail, no afã de defender o indefensável, ataca moralmente a vereadora, ele ataca de maneira machista. Não é a primeira vez que ele faz isso. Hoje eu me senti absolutamente atacado porque, fosse quem fosse, não fosse ela do meu partido...", disse Roseno, mencionando situações em que saiu em defesa de mulheres de outros partidos, como da deputada estadual Dra. Silvana (PL) que, no momento do discurso, presidia a sessão.

Dra. Silvana, que já sofreu também tentativas de silenciamento no parlamento, não se absteve de reforçar a fala de Roseno, mesmo estando no oposto do espectro ideológico de Adriana. 

"Quero me somar à Vossa Excelência, me solidarizar. O deputado Renato Roseno, por duas vezes, me defendeu nessa Casa, e a gratidão acompanha a minha índole, o meu caráter. Quero dizer que o que aconteceu com a vereadora se chama 'falácia do espantalho': não tem o argumento para contestar o que a pessoa está dizendo, aí vai e fere a pessoa. Ferir uma mulher no mês da mulher, isso é patético, tem que ter repercussão sim. Eu entendo e luto por repercussão nas redes sociais para que esse vereador fique envergonhado pelo que fez, independente das posições políticas e ideológicas. Nos unimos quando é para o bem comum, mas temos muitas pautas contrárias. Essa deputada deixa a solidariedade à vereadora Adriana Geronimo que foi atacada, que ela possa contar com todas as mulheres desse Estado, que uma mulher no poder faz toda a diferença", disse Silvana.

É com essas palavras da deputada que encerro essa coluna, em mais um dia em que uma mulher não pode exercer seu trabalho dentro dos limites que a liturgia do cargo, seja para o homem seja para mulher, requer. É mais um dia em que uma mulher não tem paz. E, infelizmente, não é o último.