Mosaûsuba rerobîasara ('os que acreditam em sonhos'): o retorno do manto Tupinambá para solo brasileiro

Os tupinambás usavam os mantos em ocasiões formais, como as assembleias, cerimônias festivas e de cunho espiritual. No total, são 11 mantos tupinambás. Todos foram inventariados e exportados para a Europa

Legenda: A peça é estruturada por linhas de algodão e penas da ave Guará
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Eu penso em outro mundo ao anoitecer. Daqui, olho, de forma maravilhada, o céu que se recama de estrela. As roseiras do quintal, as espadas do cavaleiro nobre, o riso de criança são as pedras para o caminho da harmonia.

Durante o dia, eu caço o dragão. À noite, eu sonho com a lua, com a saudade dos ausentes, com os cânticos de ninar. Posaûsuba (do tupi, sonho) é um acontecimento. Para o povo Yanomami, é a capacidade de saber ver o invisível. Sonho é revelação, política, mobilização, cura.

É mensageiro do céu: bicho que liga o mundo de lá com o de cá, tal como o beija-flor (Munduruku). Somos feitos de sonhos, foi Omama que colocou eles dentro de nós (Kopenawa). As cordas das redes são descidas para os sonhos: aqui um novo mundo é concebido, percebido, traduzido. Porta de entrada para um conhecimento que lavra o chão da vida desperta.

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Dona Nivalda Amaral de Jesus, mulher preta, baiana e indígena, carregava um nome ancestral: Amotara, que significa “querer bem a todos”. A líder dos Tupinambás de Olivença (BA) tinha um sonho de trazer de volta para casa o manto sagrado.

Imaginava esse retorno desde os tempos em que sua avó contava histórias sob a luz dos lampiãozinhos. O manto do povo tupinambá tem cerca de 1,20 metro de altura e 80 centímetros de largura. A peça é estruturada por linhas de algodão e penas da ave Guará. Sua plumagem vermelha vem do cariteno, pigmento disponível nos caranguejos e camarões, base da sua alimentação.

Os tupinambás usavam os mantos em ocasiões formais, como as assembleias, cerimônias festivas e de cunho espiritual. No total, são 11 mantos tupinambás. Todos foram inventariados e exportados para a Europa.

Em 2020, Amotara (Dona Nivalda) chorou ao ver o manto numa exposição em São Paulo. Aclamava emocionada: “Toda história do nosso povo está aqui”. Em vida, Amotoara compartilhou esse sonho com a sua filha, a cacique Jamopoty. Somente em julho deste ano, a cacique foi testemunha do regresso da indumentária ancestral.

Após 400 anos, a relíquia, símbolo de autoridade indígena chega ao Brasil. O objeto que ocupava a coleção etnográfica do Museu da Dinamarca agora está alojado no Museu Nacional do Rio de Janeiro.

Legenda: Manto Tupinambá. Obra do artista Berin.Fortaleza/CE
Foto: Berin/Reprodução

Para o Conselho Indígena Tupinambá de Olivença, as lágrimas de emoção cederam lugar à frustração. A diretoria do Museu Nacional acordou que o Povo Tupinambá seria protagonista na recepção do seu ancião sagrado.

Contudo, a nota do Diretor manifestava agradecimento à confiança depositada pelo governo da Dinamarca, ao mesmo tempo que anunciava ao Conselho Indígena que não seria viável uma organização que antecede a aparição da peça para o público em geral.

Como dizia Amotoara (Dona Nivalda), “mas os grandões chegavam para medir logo. Aí pronto, registrou, titulou e acabou.” O Museu do Rio de Janeiro, com esta postura, não contracoloniza a estrutura, pelo contrário, exerce o colonialismo de submissão (Nego Bispo).

E quando saudamos colonizadores e desdenhamos os ancestrais, o céu desaba. Diante disso, como adiar essa queda?

Os cânticos sagrados dos Anacé, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Kariri,Pitaguary, Potiguara, Tapeba, Tabajara, Tapuia-Kariri, Tremembé, Tubiba-Tapuia, Tupinambá adiam essa queda.

Os sonhos materializados nas artes de Rodrigo Tremembé, Indja, Moisés Tremembé, Rapha Anacé, Byya Kanindé, Benício Pitaguary, Glicéria Tupinambá e Daiara Tukano adiam essa queda. A publicação do livro “Universos Kariri”, organizado pela Cacique e Professora Andrea Kariri, adia essa queda.

Adiamos essa queda quando, juntos com Amotara, Cacique Jamopoty e o Povo Tupinambá, reivindicamos que o manto sagrado volte para sua aldeia.

Adio essa queda quando saúdo às crianças indígenas brasileiras, em especial, as crianças do Povo Tapuya-Kariri, da Aldeia Gameleira (Ibiapaba/Ceará) e meus queridos Oh’ry Rodrigues Araujo Krenak-Waikhan e Alice (Potyra) Peixoto do Nascimento (São Gabriel da Cachoeira/Amazonas).

Legenda: Oh’ry Rodrigues Araújo Krenak-Waikhan e Alice (Potyra) Peixoto do Nascimento. Amazonas.
Foto: São Gabriel da Cachoeira/Reprodução

Elas que são pequenas constelações abençoadas pelas águas do Rio Negro e das cachoeiras de São Benedito. Elas que são benzidas pelo véu noturno do céu Amazônico e dos corpos celeste que abrilhantam as costas da serra da Ibiapaba. Elas que são curadas pelas ervas maceradas, os maracás e os tambores da pajelança.

Elas que pintam a terra, o corpo, o papel. Os encantados fecundam essa pátria chamada Brasil, enquanto os curumins a empurram para cima. São essas crianças as guardiãs das estrelas e são os seus sonhos que operam a “mágica experiência de suspender o céu.” (KRENAK, AILTON).

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