Carta aberta de uma mulher negra para os(as) 'doutores(as)' da PL do Estupro

Diante de toda repressão imposta ao corpo da mulher nesta sociedade, com a proposição desse projeto de lei, somos revitimizadas

Legenda: A realidade é que 75% das vítimas dessa violência são crianças negras
Foto: Shutterstock

Senhoras e senhores, 

Semana passada, uma frase do livro "A Cor Púrpura”, de Alice Walker, me afrontou de forma perturbadora. Um personagem adulto cochichou para a criança:

É melhor você nunca contar pra ninguém, só pra Deus.

O diálogo mascara uma cena de abuso. A convocação do silêncio, nessa conjugação, não carrega, em nenhuma medida, o tom de bom conselho, mas, sobretudo, de recomendação ardilosa. Transfere uma responsabilidade, onde o algoz coloca a vítima no lugar de vergonha, dor e solidão.

Na quarta-feira (12), me deparo com outra redação que deixa minhas mãos trêmulas e úmidas: o PL 1.904/2024. Popularmente denominado de “PL do Estupro”, uma vez que, assentado em ideologias de tempos obscuros, o projeto propõe que o aborto realizado após 22 semanas de gestação seja equiparado ao crime de homicídio, ainda que o procedimento seja necessário para mulheres ou crianças vítimas de estupro.

Diante de toda repressão imposta ao corpo da mulher nesta sociedade, com a proposição desse projeto de lei, somos revitimizadas. Aos médicos e políticos (nossos representantes por lei) que validam essa violência deixo minha primeira provocação: “por que me faz tão mal com olhos tão azuis?”.

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De acordo com o Anuário de Segurança, no Brasil, somente no ano de 2022, foram registrados 74.930 mil casos de estupros. Uma média de 205 casos por dia. De 10 vítimas, seis com 13 anos de idade ou menos. Para estender mais ainda a rede de absurdo, fiz um recorte racial destes corpos femininos.

A realidade é que 75% das vítimas dessa violência são crianças negras. Os corpos das mulheres negras, vossa excelência, recebem menos consultas pré-natais e são as que mais padecem com a violência obstétrica. Vocês acreditam que essas mulheres são as pacientes que menos recebem anestesia?! Alegam que somos fortes e, diante disso, podemos e, portanto, temos que aguentar a dor.

Ainda nesse cenário chocante, em 10 anos, mais de 48 mil mulheres foram assassinadas. Desse total, 70% dessas vítimas são negras (pretas e pardas). No pódio do trabalho doméstico, estamos no alto. Já no palanque do ensino superior, ficamos lá embaixo.

Vossas Excelências já tiveram a certeza do desamparo? 

Sou uma mulher negra e gostaria de ter sentido, com maior frequência, o sabor da proteção. Guardo bem cada abraço que se transformou em abrigo. Guardo no potinho de ouro, porque, para nós, eles são pequenas joias: atípicas e brilhantes. Mas quantas meninas não tiveram nenhuma gota de proteção e sentiram náufragas no mar onde tudo sangra?

A protagonista da obra "A Cor Púrpura” escreve uma carta para Deus. Acredito nele, mas será que fazer uma prece é nossa última saída? A nossa rede de proteção tem em demasia abandono, solidão, estigma, mágoa e uma ruma de fantasmas. Não quero acreditar que só nos resta a lei de Deus quando a do homens nos torna ré.

A cultura patriarcal dominante é ávida de poder e nada acanhada quando se trata de arremessar no moinho qualquer manifesto de liberdade feminina. Diante de todas as leituras, por fim, me abracei com Maya Angelou, escritora, poetisa e ativista negra. Ela disse:

Meu pecado é falar mais alto
Maya Angelou
Escritora

Afirmou isso no mesmo contexto de dor que carrega a violência que trato no início desta carta. A autora, dotada de bravura, recitou ainda: “Abandonando as noites de terror e medo, eu me levanto/ Para um amanhecer maravilhosamente claro, eu me levanto/ Trazendo as dádivas que meus ancestrais me deram, eu sou o sonho e a esperança dos escravos”. 

Concluo, excelentíssimas autoridades, reivindicando que o Estado, Deus (para quem nele crê), Família e Sociedade, diante das cercas, dos ataques e das corrosões, nos guardem nos olhos, e não debaixo dos pés. Proteção é, acima de tudo, um direito fundamental, não tão somente um ato de fé.

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