'A gente pode pôr flores amarelas no cabelo das meninas'

Até hoje, ao lembrar dos insultos que recebi no intervalo das aulas, me irrompe um nó na garganta e um suor frio nas mãos

Legenda: Era soltar o cabelo para na sequência ouvir gritos de “cabelo pixaim”, “Negrinha do Pajeú”. A velha latinha de óleo tinha uma ilustração de uma menina negra de cabelo crespo com penteado de trança
Foto: Arquivo Pessoal
O tempo é aquele raio atrevido que atravessa as rotinas, materializando a teimosia do amanhecer. Sai desembestado tecendo memórias, silêncios e sensibilidades. Voa, acomodando porções de formosuras e saudades. Devagarinho, ele constrói vínculos, retornos e reconexões. 
 
Com o espetáculo multiartístico Samba da Vicença, aprendi que “o nosso povo precisa viver. E viver tem pra trás e tem pra frente”. O tempo que circula é o elemento que nos retroalimenta. Girassol, carrossel, dança do xirê, mesa de samba, círculo de capoeira.
 

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Na filosofia africana, a roda simboliza uma metodologia de pensamento e de ordenação do mundo. Esse tempo, tal como espiral, se enrola e desenrola, formulando elos e revisitando as instâncias temporais que nos constituem. Nesse movimento constante, passado, presente e futuro jogam conversa fora nas cadeiras de balanço que ocupam as calçadas.
  
 
O cantor Emicida apresenta ao Brasil a gira final da sua obra musical “Amarelo”. Essa construção artística que foi sol, prece e vida tem sua feitura num pensamento rodante. Nesse álbum, durante a canção Cananéia, Iguape e Ilha Comprida, a filha do Emicida sugere que a gente adorne os cabelos crespos com flores. Uma criança negra enxergando e verbalizando a beleza que têm seus traços.  Em sua fala, identifiquei alguém que já fui, que sou e queria ser. 
 
Quantas meninas merecem flores no cabelo?
 
Recentemente a atriz Samara Felippo dominou as redes sociais com uma denúncia de um ato de racismo contra sua filha no ambiente escolar. A adolescente teve seu caderno rabiscado com frases violentas e racistas. Alunas que cometeram o repugnante episódio foram suspensas da instituição de ensino, mas a atriz reivindica a expulsão das colegas.
 
Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Referência Negra Peregum aponta que 64% dos brasileiros entre 16 e 24 anos sofrem racismo na universidade, faculdades e escolas. Dessas vítimas, 63% são mulheres negras, as quais afirmam que a raça é o principal vetor dos crimes de ódio.
 
Nesta semana, foi lançado o programa Primeira Infância Antirracista (PIA) pela Unicef, em parceria com a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal e o Governo do Estado. Em nosso estado, 34 municípios irão receber orientação profissional, materiais e partilha de metodologias para implementação de um plano antirracista nas escolas. Essa articulação proposta pelo programa Primeira Infância Antirracista (PIA) é fundamental na construção de uma rede sensível de promoção do cuidado com essas crianças que têm seu desenvolvimento fragilizado por prática racistas.
 
Até hoje, ao lembrar dos insultos que recebi no intervalo das aulas, me irrompe um nó na garganta e um suor frio nas mãos. Era soltar o cabelo para na sequência ouvir gritos de “cabelo pixaim”, “Negrinha do Pajeú”. A velha latinha de óleo tinha uma ilustração de uma menina negra de cabelo crespo com penteado de trança. 
 
Aquele produto era feito da base do caroço de algodão. Foi no campo das produções de algodão que o povo negro foi escravizado e explorado para manutenção de riqueza dos latifundiários. O mesmo ouro branco que faz nosso povo feliz (assim cantava Luiz Gonzaga) foi matéria-prima de uma mercadoria associada a expressões racistas que marcou dolorosamente toda uma geração. 
 
Um programa que propõe um pacto coletivo entre instituições e agentes para implementação de ações antirracistas nas unidades de educação é uma estratégia revolucionária na contribuição no processo da autopercepção, autoconfiança, construção de identidade e prevenção da saúde física e mental desta criança. Não se coloniza o pensamento e não se determina o destino de quem tem a firmeza de saber quem é.
 
O descaso de uma política pública que não acolhe a diferença, é também, como canta Bia Ferreira, “um plano maligno”. Há de se resistir mais um dia. 
 
Estamos aqui: nessas dobras de um tempo que é adornado de casca dourada e segue altivo devorando horas. De um tempo que refaz o destino e os sentidos. Repare o que ele traz: canto de menina, acalanto de mãe, samba e gargalhada, angústia, beat e ginga, retratos de infância e, sobretudo, a chegada das flores em nossos cabelos.
 
É na primavera que “os sonhos vivem e te ambicionam a não parar por aqui”: foi o artista 6utto que me sussurrou assim. Saltitando entre as estações do ano, o tempo, em mais um giro, segue e retorna, anunciando assim pra nós: ei, não se esqueçam de si.


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