Um homem negro que, ocupando e rasgando a brecha do sistema, dominou os flashs, os scripts, os castings e a foto principal das matérias jornalísticas que ficam do outro lado do Atlântico
Durante a entrevista, encarei seus olhos curiosos. A cada relato de sua história, os seus olhos, coadjuvantes da sua voz, sorriam, brincavam ou se incendiavam pelo toque do afeto da memória. Às vezes, esses olhos apareciam cansados e reivindicavam uma terra que não muda neste mundo caduco. Por vezes, esses olhos promissores abriam champagne para celebrar a esperança. Nos olhos dele, passava um mundo inteiro. Ali, se assentava, inclusive, o amor. Iago Xavier, no ato de declaração de benquerença, adotou para si o nome da avó: Mazé.
Os olhos dela assumiam uma cor úmida e tornavam-se marejados a cada vez que o neto interpretava uma música da sua simpatia. Era aquele instante de cumplicidade que trazia acalanto para a mulher que ostentava o mundo nos ombros. Na pausa da canção, ele corria para abraçá-la, mesmo sob a resistência de quem aprendeu que reprimir a emoção era um ato de bravura. O espírito arredio do menino, em posse desse gesto, teimava em apresentar a sua avó uma outra perspectiva sobre o abraço: “a ternura é um ato de coragem"*.
Para Mazé, o menino, a magia das sessões de filmes só explodia se ao lado do sofá houvesse o afago da mãe. A firmeza para encarar o palco e entrar em cena no curso de Teatro do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) só era válida se naquele grupo de criação houvesse cumplicidade e amorosidade. No Centro Cultural Porto Dragão, ele embarcou numa residência artística. Para ele, um espaço seguro, visto que partilhava essa experiência com pessoas que em sua trajetória lhe foram abrigo.
Persistindo a vontade irreverente de renovar a experimentação dos passos, levou seu rumo para o grupo Nóis de Teatro e, mediado por esse desejo ardente de despir o céu com sua atuação, aportou seus lampejos de inventividade no set do filme “Motel Destino”, do diretor cearense Karim Aïnouz, estreado em maio deste ano no Festival de Cannes. Parafraseando a curadora da Bienal de São Paulo, Diane Lima, Mazé, agora homem, tem “um jeito negro de fazer e realizar a sua existência através da linguagem”.
Essa história é de um homem negro, nascido no Pirambu, periferia de Fortaleza, Ceará. Um homem negro que “sente na pele a dor, o luto, o medo, e é alvo dessa fome e desprezo”, como rima Big Léo e Mateus Fazeno Rock. Um homem que chora sem culpa e dança no tapete vermelho com a altivez que só os nobres carregam. Um homem negro que, ocupando e rasgando a brecha do sistema, dominou os flashs, os scripts, os castings e a foto principal das matérias jornalísticas que ficam do outro lado do Atlântico. Aquele segundo maior oceano que levou fuzis, ferrolhos, armas, diplomacias, sob a justificativa de que precisava civilizar o mundo, sorria, refinadamente, para ele.
Também lá, do outro lado do Atlântico, os críticos internacionais estão aplaudindo o pianista Amaro de Freitas, um exímio músico da periferia da Zona Norte do Recife, que uniu o jazz, a cultura popular e sons da Amazônia em suas composições. Ainda do lado de lá, de forma semelhante, o garoto de São Gonçalo (Rio de Janeiro) atravessa esse oceano para ser eleito o melhor jogador do mundo pela Liga dos Campeões da União das Associações Europeias de Futebol. Entre títulos, dribles, medalhas e uma possível bola de ouro, Vini Jr coleciona também um histórico extenuante de discriminação pelo torcedor europeu.
Como diz a canção “The Story of O.J”, de Jay Z (rapper e agente agente do jogador do Real Madrid), “não importa o seu poder de capital, o tapete de ouro que pisa ou os talheres brilhantes que você manuseia. Um negro sempre será um negro”. Em cada aparição, Mazé dizia: “Estar aqui é um ato político. Apesar das danças das marés, do fluxo do vento e da lua, dos naufrágios, da ausência do bilhete de primeira classe, a minha arte é um ato político. A gente vinga, vive e se espalha feito constelações de estrelas”.