Da sala da Vó Mazé ao tapete vermelho de Cannes: Iago Xavier, brilha

Um homem negro que, ocupando e rasgando a brecha do sistema, dominou os flashs, os scripts, os castings e a foto principal das matérias jornalísticas que ficam do outro lado do Atlântico

Legenda: Atores dividem tapete vermelho no Festival de Cannes. Da esquerda para direita: Fábio Assunção e os cearenses, Nataly Rocha, Karim Aïnouz e Iago Xavier, do longa "Motel Destino"
Foto: Christophe Simon / AFP

Durante a entrevista, encarei seus olhos curiosos. A cada relato de sua história, os seus olhos, coadjuvantes da sua voz, sorriam, brincavam ou se incendiavam pelo toque do afeto da memória. Às vezes, esses olhos apareciam cansados e reivindicavam uma terra que não muda neste mundo caduco. Por vezes, esses olhos promissores abriam champagne para celebrar a esperança. Nos olhos dele, passava um mundo inteiro. Ali, se assentava, inclusive, o amor. Iago Xavier, no ato de declaração de benquerença, adotou para si o nome da avó: Mazé. 

Os olhos dela assumiam uma cor úmida e tornavam-se marejados a cada vez que o neto interpretava uma música da sua simpatia. Era aquele instante de cumplicidade que trazia acalanto para a mulher que ostentava o mundo nos ombros. Na pausa da canção, ele corria para abraçá-la, mesmo sob a resistência de quem aprendeu que reprimir a emoção era um ato de bravura. O espírito arredio do menino, em posse desse gesto, teimava em apresentar a sua avó uma outra perspectiva sobre o abraço: “a ternura é um ato de coragem"*. 

Para Mazé, o menino, a magia das sessões de filmes só explodia se ao lado do sofá houvesse o afago da mãe. A firmeza para encarar o palco e entrar em cena no curso de Teatro do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) só era válida se naquele grupo de criação houvesse cumplicidade e amorosidade. No Centro Cultural Porto Dragão, ele embarcou numa residência artística. Para ele, um espaço seguro, visto que partilhava essa experiência com pessoas que em sua trajetória lhe foram abrigo.

Foto antiga da família de Iago Xavier
Legenda: Da esquerda pra direita: tia-avó Tereza, tio Wilame, mãe Elisangela, avó Maria José e tia Erinha, família de Iago Xavier
Foto: Acervo Pessoal

Persistindo a vontade irreverente de renovar a experimentação dos passos, levou seu rumo para o grupo Nóis de Teatro e, mediado por esse desejo ardente de despir o céu com sua atuação, aportou seus lampejos de inventividade no set do filme “Motel Destino”, do diretor cearense Karim Aïnouz, estreado em maio deste ano no Festival de Cannes. Parafraseando a curadora da Bienal de São Paulo, Diane Lima, Mazé, agora homem, tem “um jeito negro de fazer e realizar a sua existência através da linguagem”.

Essa história é de um homem negro, nascido no Pirambu, periferia de Fortaleza, Ceará. Um homem negro que “sente na pele a dor, o luto, o medo, e é alvo dessa fome e desprezo”, como rima Big Léo e Mateus Fazeno Rock. Um homem que chora sem culpa e dança no tapete vermelho com a altivez que só os nobres carregam. Um homem negro que, ocupando e rasgando a brecha do sistema, dominou os flashs, os scripts, os castings e a foto principal das matérias jornalísticas que ficam do outro lado do Atlântico. Aquele segundo maior oceano que levou fuzis, ferrolhos, armas, diplomacias, sob a justificativa de que precisava civilizar o mundo, sorria, refinadamente, para ele.

Também lá, do outro lado do Atlântico, os críticos internacionais estão aplaudindo o pianista Amaro de Freitas, um exímio músico da periferia da Zona Norte do Recife, que uniu o jazz, a cultura popular e sons da Amazônia em suas composições. Ainda do lado de lá, de forma semelhante, o garoto de São Gonçalo (Rio de Janeiro) atravessa esse oceano para ser eleito o melhor jogador do mundo pela Liga dos Campeões da União das Associações Europeias de Futebol. Entre títulos, dribles, medalhas e uma possível bola de ouro, Vini Jr coleciona também um histórico extenuante de discriminação pelo torcedor europeu.

Foto da avó de Iago Xavier quando ela era criança
Legenda: Avó de Iago Xavier, Maria José, com 8 meses
Foto: Acervo Pessoal

Como diz a canção “The Story of O.J”, de Jay Z (rapper e agente agente do jogador do Real Madrid), “não importa o seu poder de capital, o tapete de ouro que pisa ou os talheres brilhantes que você manuseia. Um negro sempre será um negro”. Em cada aparição, Mazé dizia: “Estar aqui é um ato político. Apesar das danças das marés, do fluxo do vento e da lua, dos naufrágios, da ausência do bilhete de primeira classe, a minha arte é um ato político. A gente vinga, vive e se espalha feito constelações de estrelas”.

* Citação do Poema “Casamento”, de Adélia Prado.