Lázaro, Borba Gato e o agricultor armado da Secom: diferentes, porém semelhantes

Legenda: Estátua incendiada de Borba Gato em São Paulo
Foto: Reprodução/Twitter

Em 20 de junho de 2021, Lázaro Barbosa, depois de vinte dias de cerco e perseguição policial, é morto pela polícia de Goiás, no município de Águas Lindas, com uma centena de tiros. No dia 24 de julho de 2021, um grupo identificado como Revolução Periférica põe fogo na estátua do bandeirante Borba Gato, na cidade de São Paulo. No dia 28 de agosto de 2021, a pretexto de comemorar o dia do agricultor, a Secretária de Comunicação do governo federal publica uma peça publicitária, em que se vê a imagem de um jagunço, um homem armado, que representaria o homem do campo brasileiro.

O que esses três acontecimentos, aparentemente tão díspares, tão distintos, ocorridos em momentos e lugares diferentes, têm em comum?

Eles remetem à histórica relação entre violência armada e formação e manutenção da estrutura fundiária brasileira, a relação entre conquistas de terras, manutenção e expansão do latifúndio no País. Os bandeirantes se tornaram grandes proprietários de terras, recebendo doações e mercês reais, recebendo, diretamente da Coroa portuguesa, a doação das terras que eles haviam “limpado” da presença de indígenas ou da presença de negros escravizados, fugitivos e aquilombados.

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Muitas das famílias detentoras, ainda hoje, de grandes extensões de terra, no Nordeste, descendem, por exemplo, dos paulistas que compunham o Terço (grupo de homens armados destinados a combater a resistência indígena) sob o comando do mestre de campo Manuel Álvares de Moraes Navarro, que matou 400 e aprisionou cerca de 250 índios Paiacus, na ribeira do rio Jaguaribe. 

Esse episódio ocorreu no ano de 1699 e fez parte da chamada Guerra dos Bárbaros, uma série de levantes indígenas ocorridos entre 1650 e 1720, que se estendeu pelos territórios que hoje compõem os estados nordestinos, ou seja, desde os sertões da Bahia até o Maranhão, pondo frente a frente os indígenas pejorativamente chamados de Tapuias, ou seja, os índios que não pertenciam às tribos Tupis e grupos de homens brancos armados, buscando se apropriarem das terras indígenas para a criação de gado.

O capitão (era assim que eles se chamavam, não por mera coincidência) Manuel Navarro logo escreveu ao governador dando conto dos “bons serviços” prestado à sua Majestade e ao projeto colonial que a metrópole europeia levava a cabo entre nós, sendo agraciado com datas de terras nas férteis ribeiras do rio cearense. O mesmo ocorreu com aqueles brancos que sob as ordens de Domingos Jorge Velho, notório caçador de índios para a escravização e de escravizados fugitivos, massacraram os negros aquilombados em Palmares, em 1694.

A escandalosa concentração da propriedade da terra no Brasil, um dos países que jamais realizou uma verdadeira reforma agrária, resulta da continuidade dessa estrutura fundiária herdada do período colonial, constituída à base do genocídio e escravização indígena e da matança e escravização dos africanos. 

Ainda temos, inclusive em setores da esquerda brasileira, quem venha defendendo, esses dias, o papel civilizatório dos bandeirantes, assumindo a velha narrativa colonial, a narrativa feita pelo branco e colonizador, que é, ao mesmo tempo, racista e colonialista. A própria designação de bárbaros para nomear os levantes dos índios que estavam defendendo seus territórios da invasão branca, embora muitos deles tenham lutado ao lado dos brancos, que utilizavam as rivalidades intertribais para envolver a todos nessa empresa de “liberação de terras” para a colonização, mostra qual a visão ideológica que preside essas versões da história. 

É muito interessante ver a direita brasileira, grande parte dela branca e proprietária dessas terras, assim conquistadas e preservadas, se colocar contra o revisionismo histórico. Saibam que as narrativas históricas sempre são revisadas porque o passado é escrito a partir das questões, dos problemas e das demandas do presente. Justo eles que querem reescrever a história e a memória de eventos como o golpe de 1964 e dos episódios de tortura que lhe seguiu, agora são contra se rever as narrativas míticas sobre os bandeirantes, construídas, em sua maior parte, por intelectuais ligados ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, visando dar àquele estado um papel central na história do Brasil, fazendo do bandeirante o responsável pela configuração atual do território brasileiro, já que se resume a formação da nação a seu território, excluindo, como sempre, da construção da nacionalidade, o próprio povo, principalmente se ele é indígena e negro.

Borba Gato, como a maioria dos bandeirantes, foi o braço armado para a implantação dos interesses coloniais e metropolitanos em nossos sertões.

Acusado de ter participado do assassinato do governador-geral das Minas, D. Rodrigo Castelo Branco, fugiu para os sertões do rio Piracicaba e do rio Doce, sendo posteriormente perdoado dadas as descobertas de metais que fez na região do rio das Velhas e empossado no cargo de Tenente General do Mato. Como no mato também se escondeu, com enorme habilidade, desafiando a competência de cerca de 270 policiais, Lázaro Barbosa, que, ao que tudo indica, foi protegido por fazendeiros da região, para quem prestava serviços, usando as suas habilidades de matador. 

Lázaro era, possivelmente, mais um dos inúmeros homens pobres, mestiços, que colocaram as suas habilidades no uso de armas, a serviço dos grandes proprietários de terras, ao longo da história brasileira.

Embora hoje não se chamem mais de coronéis e posem de empresários modernos do agronegócio, desfilando em carrões e aviões, alguns deles não titubeiam em manter ou contratar jagunços para resolver pendências com vizinhos, nas disputas por terras ou poder político; para matar lideranças sindicais, que reivindicam os direitos para os trabalhadores do campo; para invadir terras indígenas e de quilombos, matando suas lideranças, visando atender a sede inesgotável por terras; para matar funcionários públicos que denunciam e flagram o uso de trabalho análogo ao escravizado, desmatamentos ilegais, contrabando de madeira, etc.

Publicação do governo federal em homenagem ao Dia do Agricultor
Legenda: Publicação do governo federal em homenagem ao Dia do Agricultor
Foto: Reprodução/Twitter

Portanto, a imagem usada pelo governo Bolsonaro para homenagear o dia do agricultor, poderíamos classificar, freudianamente, como um ato falho, a medida que, evidentemente, não representa o que é a maior parte dos agricultores brasileiros, mas deixa vir à tona a face mais violenta, se torna um sintoma da história pouco contada e pouco gloriosa de como se constituíram grande parte das fortunas no campo brasileiro, como foi possível que um só empresário detenha a propriedade de extensões de terras que equivalem ao território de muitos países do mundo, um escândalo que não deveria ser aceito e naturalizado. 

Infelizmente, o jagunço, o homem armado, matando para defender os interesses e privilégios dos poderosos, o homem pobre, quase sempre um mestiço, colocando suas habilidades de matador (tão valorizada em época de República miliciana), é uma constante na história brasileira. Embora tenha tido muitas denominações (bandeirante, jagunço, pistoleiro, matador de aluguel), o profissional da tocaia e da bala, a serviço do crescimento da fortuna, da riqueza e dos privilégios dos quem têm posse e cabedal, no Brasil, é um personagem que não volta porque nunca foi embora da nossa sociedade, estruturada na violência, no genocídio, no racismo e no colonialismo. Os limpadores de botas do bandeirante incendiado representam e assumem essa história.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.