Sudestino: quando uma boa intenção sai pela porta dos fundos

Legenda: Participam da esquete do roteirista potiguar Edu Araújo, o ator Gregório Duvivier, a atriz e jornalista pernambucana Ademara Barros e o humorista baiano João Pimenta
Foto: Reprodução

No dia 19 de julho, uma segunda-feira, o grupo Porta dos Fundos publicou, no YouTube, um esquete de humor intitulada Sudestino, que teve grande repercussão nas redes. O vídeo foi concebido pelo roteirista potiguar Edu Araújo e teve a participação de Gregório Duvivier, no papel de Bruno, um paulista que se mudou para o Recife, porque sua companheira passou num concurso; a atriz e jornalista pernambucana Ademara Barros, no papel de Júlia, funcionária da empresa onde Bruno está começando a trabalhar e o humorista baiano João Pimenta, que faz uma pequena participação como um outro funcionário da empresa.

O esquete parte de uma boa intenção, a de questionar as generalizações estereotipadas e preconceituosas feitas em relação aos nordestinos, ao fato de milhões de habitantes de nove estados da federação serem vistos como tendo características físicas e culturais homogêneas, muitas vezes pejorativas ou depreciativas. 

No entanto, me parece, que a estratégia adotada não foi a mais feliz, primeiro porque para fazer o questionamento da generalização adotou outra generalização, apostando que o deboche, o discurso do humor relativizaria e problematizaria essa generalização. 

Ao adotar a estratégia de inversão da direção do discurso, o roteirista possivelmente não se deu conta de que, quando apenas invertemos algo de direção, terminamos por ficar preso aos mesmos pressupostos. No caso, a inversão naufraga, ainda mais, pois o alvo da generalização é uma identidade inexistente: a de sudestino. 

Ao pretender demonstrar a artificialidade de uma identidade homogeneizada, mas que efetivamente existe e é assumida, inclusive com orgulho por alguns, como a identidade nordestina, invertendo a direção do discurso para uma identidade que ninguém assume, que não é defendida ou incorporada por ninguém, o discurso crítico cai no vazio, pois ninguém vai se sentir referido por ele. O esquete fica como um Quixote esgrimindo contra um fantasma que se sabe um fantasma.

Veja também

Para os próprios nordestinos, torna-se difícil assumir, sem reservas, o ponto de vista do esquete, pois fazê-lo é, de saída, assumir a existência de um outro que lhe é estranho, o que pode adquirir a conotação de desinformação e ignorância: ficar zombando de um sudestino, que se sabe inexistente, não seria fazer papel de bobo? 

No Nordeste, enquanto a identidade de nordestino, mesmo com todas as consequências subalternizantes que possa ter, é assumida e vivida pela grande maioria, e mais ainda quando os habitantes dessa região migram e sofrem o impacto do preconceito e da homogeneização fora dela, as pessoas sabem que a identidade regional não é sudestino, que o Sudeste é apenas um recorte político-administrativo, só existe como parte de uma divisão regional muito recente, feita em 1969, mas que não é assumida ou vivida por ninguém, ninguém se diz ou se considera sudestino. 

Os nordestinos lidam com outras identidades regionais: a de paulista, carioca, mineiro, e o uso de sudestino vai soar como desinformação. Quando o nordestino alegrinho diz que o Bruno “tem uma cara de sudestino da porra”, embora a intenção seja problematizar a ideia de que haveria uma “cara de nordestino”, ela termina por não funcionar, pois isso nunca seria dito, gerando nos nordestinos o sentimento de “vergonha alheia”, de constrangimento pelo absurdo que o conterrâneo está dizendo.

Mas o que faz as boas intenções do esquete saírem literalmente pela porta dos fundos é a reafirmação, possivelmente não intencional, da hierarquia entre os nordestinos ignorantes e mal informados, cometendo um equívoco atrás do outro, e o paulista sabe-tudo, o inteligente que corrige todos os erros de uma nordestina falante e burra e de um nordestino, que chega do nada, todo alegrinho, para dizer outra patacoada. 

O esquete assume, inclusive, traços sexistas, ao remeter para a imagem da loira burra, da mulher tagarela, que confunde toda a geografia do país, pois até os gaúchos vão ser incluídos entre os sudestinos. O paulista, adotando um ar de superioridade e incredulidade, fica ali corrigindo, estupefato, as bobagens que saem pela boca de uma pessoa de sotaque bastante carregado e que, além de tudo, faz salamaleques por sua chegada à região e à empresa. 

A pergunta admirada sobre o porquê de ele ter se mudado para a região, pergunta que um paulista nunca faria a um nordestino, repõe a imagem da existência de uma hierarquia entre estes dois espaços, sendo o Nordeste um lugar de segunda categoria.

Sem querer ou se dar conta, o esquete reproduz estereótipos dos mais arraigados em relação aos nordestinos e aos paulistas: o de que o nordestino só é apto para o trabalho braçal, para ser pião de obra, por seu analfabetismo, seu pouco letramento, sua pouca capacidade para o trabalho intelectual, enquanto o paulista é aquele que sabe, o inteligente, o destinado à vida intelectual. 

Enquanto os nordestinos parecem estar sempre alegres, animados, rindo não se sabe com que ou de que, dizendo as maiores bobagens de modo descontraído, o paulista está sério, compenetrado, e vai, didaticamente, corrigindo a burrice descontraída de seus colegas. 

No final a sensação é a de que, ainda bem para essa empresa e para essa região, esse rapaz resolveu deixar o sacrossanto Sudeste e ter resolvido vir desbravar essa terra de ignorantes, trazendo para cá sua sabedoria, ensinando rudimentos básicos de geografia e de traços culturais de cada área do país.

A linguagem do deboche, do humor, é caracterizada pela figura da ironia, do sarcasmo, que geram imagens e sentidos ambivalentes, ambíguos. A recepção do discurso do humor e do deboche nem sempre se dá como se espera, há um grande risco de se ler literalmente o que seria uma alegoria, uma imagem irônica. 

A ironia e o deboche podem não ser percebidos e terminar por serem recepcionados como se fossem uma afirmação literal. A melhor estratégia talvez fosse a de partir das identidades efetivamente circulantes no país e relativizar as imagens e falas que as definem: ridicularizar as pretensões de superioridade dos paulistas ou o imaginário que constitui o ser nordestino que, infelizmente, não é criação dos “sudestinos”, mas das próprias elites políticas e intelectuais do Nordeste, por isso a estratégia de acusar o outro, de inverter o discurso que nos subalterniza e nos homogeneiza não funciona, é inadequada. 

Não é inventando mais uma identidade genérica, estereotipada e homogeneizadora, ainda mais sendo ela fruto da mais absoluta ignorância e confusão mental, que se vai combater o preconceito contra a origem geográfica e de lugar.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.