Minha irmã morreu, mas passei a escrever cartas para conversar com ela todos os dias
Como o amor de uma mulher pela irmã mais velha ensinou que é possível dar vida à morte – até quando isso parece impossível
Você ouve o som do mar? Eu consigo. Está revolto agora, mesmo que seja manhã. Há uma névoa branda que se estica pelo nascente, engolindo tudo. Mas dá para ver duas mulheres sentadas na areia, roupa molhada de banho recém-tomado. Chamarei as duas de Erilene e Lia.
Chegaram não faz muito tempo, e logo aprontaram mergulho. Saíram depressa porque as ondas estão fortes e aproveitaram para fazer o que sabem de melhor: conversar. Olhar uma para outra. Dividir. São irmãs – Erilene mais nova, Lia referência. Irmãs-companheiras, amigas, ora mãe, ora filha uma da outra. Íntimas. Dali, passariam boas horas em frente ao oceano e depois rumariam para casa. O alpendre chama.
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Faz décadas que as moradas são vizinhas, na Maraponga, e guardam confissões. Ou só bobagens, miolos de pote, descompromisso. É o que salva os dias de cão e dá textura às horas de glória. “Não sei dizer que amor é esse. Acho que é um amor que se constrói”, arrisca Erilene. Então, como é que fica quando o muro cai, a parede arruina e a argamassa descola? As coisas realmente descolam, arruinam? Acabam?
Lia morreu. Foi um processo – a notícia da doença, os “preparativos” para a despedida e, então, o fato. Ela não está mais. O que era realidade vai virar moldura, substância corroída pelo tempo. A areia da praia não tocará mais os pés dela, o alpendre não receberá visita. As xícaras do café ao fim de tarde, os talheres dos almoços de domingo, os livros e as maquiagens. Metamorfose: tudo virou saudade. Virou também torpor.
Porque Erilene entende o fim, mas não assente. É difícil demais a ruptura. E não foi qualquer ruptura, você entende: foi da pessoa favorita. Lia ariana, pé no chão, guia, dicionário. Erilene pisciana, utópica, carinho, festa. Tudo era tão certo entre elas que espantava. Família grande, incontáveis irmãos, e aquele chamego extra, santuário exclusivo entre as duas. Bilhões de pessoas no universo, e o bem supremo bem ali ao lado. Maluquice, né? Privilégio.
Foi na adolescência que a beleza nasceu. Viraram confidentes para falar dos namoradinhos, das pelejas, das iluminações. Anos voando e passos maiores. Vieram as filhas de Lia, e Erilene perto. As conquistas profissionais de Erilene, Lia ao redor. Não era apenas acompanhar. Era corporificar sonhos descritos em conversas e perceber que redemoinhos podiam ser domados. Elas se entreolhavam nos passos dados, emocionadas, tudo tão sublime… Ai, que já saudade!
Talvez viver seja isso: lidar com a falta inadiável. A falta da Lia chegou e levou tudo da Erilene. Uma tristeza, uma paralisia. Falta. “O amor me moldou antes de ela falecer. Fui me tornando alguém acreditando que era possível realizar. Antes, sonhava muito. Quando se é muito sonhador, parece que a gente tá inadequado nesse mundo objetivo. A Lia, o jeito de ela ser, a fazia entrar em embate com nossa mãe para eu conseguir fazer as coisas que eu pensava. À medida que ela ia tomando partido por mim, fui vivendo”.
Aprendeu tanto a viver que, em algum momento, precisou ser a própria Lia. Após o falecimento, Erilene assumiu as tarefas da casa, o cuidado da mãe e do pai adoecidos, o direcionamento das sobrinhas-filhas.
Perdeu-se de si para encontrar a irmã e não deixar que ela fosse. Teve, contudo, que arrumar um jeito mais concreto, alguma forma muito dela, para que os diálogos no mar, no alpendre e nos cômodos não cessassem. Virassem rotina.
Passou a escrever cartas. Linhas e linhas ausentes em envelope, sem passar pelos Correios. Gavetas. Detalhes bastante miúdos, do quanto tudo estava peleja. Lia soube de tudo. Da jornada pela própria história da irmã, as próprias vidas delas, remendos deixados pelo caminho e nunca ditos. Erilene se deu conta de tanto… Do porquê dos olhos tristes da mãe, das perguntas desconcertantes do pai no Alzheimer avançado, da rotina silenciosa.
Modo de não sucumbir e de se compreender. Tem nada a ver com superar – não há nada para superar. Superar o amor? Parece mais com saber lidar. Dar vida à morte, chamar a dor pra dançar. Baile que se move em chão, suspira pro céu e assenta em livro. Erilene transformou as cartas em livro, testemunho delicado sobre os mortos dela – Lia, mamãe, papai, a outra irmã, Lúcia. Nenhum estava fisicamente para se emocionar junto no lançamento da obra. Mas foi tanta gente reunida em família que eles estavam lá sim, grande alpendre do aconchego.
“Quando chega o momento em que você é dor pro outro, as coisas precisam mudar. Não acho que ninguém mereça isso. Então quero ter coragem e saúde para ser senhora de mim. Não tenho direito de decidir como será minha vida, mas tenho direito de desejar. Não quero dar tristeza absurda para os que me amam. Preciso deles todo dia, então quero beijo, abraço, palavras de alegria, ombro pra chorar, tudo o que têm pra me dar. Eu quero, recebo e também dou”.
Erilene me fala essas coisas no dia do aniversário de Lia, 17 de abril. A irmã perdeu as contas, não sabe quanto de idade a irmã faria. Sabe que amanheceu, rezou, agradeceu a Deus, pediu a Ele luz para a companhia querida.
Sabe também que elas iriam para o mar, depois tomar uma cervejinha, comer picanha, preparar e realizar festa. Conversariam, como sempre. Erilene apresentaria o livro que não deu tempo mostrar. E elas leriam como se fosse diário. Contaria da filha da Lia que engravidou, a surpresa. A maravilha.
Sabe que já é outra e que o carinho modifica. Tem gosto agridoce, feito manga verde com sal. É assim mesmo. Quando algo parece impossível, a gente tem que voltar para aquela paisagem de oceano e sentir-se pertencente.
Ter um corpo que responde aos baques e alma que busca alegria. Encontrar a si. Dentre as tantas coisas que o amor pode ensinar, é que a falta nem sempre é sobre faltar mesmo. Talvez ela nem exista. A Lia permanece. Os seus, igualmente. São uma longa carta.
*Esta é a história de amor das irmãs Erilene e Lia Firmino. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.
Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor