Um crítico no labirinto da memória
Para LG de Miranda Leão, o cinema era uma paixão que convidava ao saber, rigoroso e minucioso. A falta da voz do crítico se faz sentir entre aqueles que ainda lembram de suas lições
“O ano passado em Marienbad” é o maior filme já feito.
Ainda que duvide que LG de Miranda Leão tenha escrito isso alguma vez, tenho certeza de ter ouvido o veredito daquele que talvez seja o nosso maior crítico de cinema, certamente um dos mais agudos do País. ”Estou convencido”, ele disse não sei quantas vezes, como se o tema fosse urgente e não houvesse debate mais importante.
Não recordo o ano, mas era algo como 2014 ou 2015. LG (até onde sei, não gostava que usassem Luiz Geraldo) era colaborador do Diário do Nordeste e trazia, uma ou duas vezes por mês, longos ensaios. Eram apreciações sobre grandes obras do cinema ou de alguma filmografia em particular.
Uma década antes, quando ainda era estudante de jornalismo, eu o li no exercício da crítica, no calor da hora, escrevendo sobre “Cidade dos Sonhos” (2001), de David Lynch.
Sobre “Marienbad”, claro, já havia escrito, como se viu em sua primeira coleção de críticas, publicada na Coleção Aplauso da Imprensa Oficial SP. LG partilhava sua cinefilia e seu conhecimento sobre a sétima arte desde os anos 1950. Lembro quando, numa pesquisa, esbarrei com uma coluna que manteve no jornal O Unitário. As edições eram de 1957. O espaço, ri, era infinitamente menor do que aquele que LG então pleiteava, de até duas, três páginas, incompatível com a dinâmica contemporânea de impresso, mas que, de alguma forma, conseguíamos viabilizar.
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Quando deu seu veredito sobre os méritos superlativos daquele filme, o crítico já estava em sua terceira entrega sobre o longa-metragem do diretor Alain Resnais e do roteirista Alain Robbe-Grillet. É uma obra complexa: como num labirinto, perdem-se personagens e o público no imenso hotel, povoado e vazio a um só tempo, no mais próximo que a sétima arte chegou de traduzir a dinâmica dos sonhos. Ainda assim, a frequência era atípica para alguém tão disciplinado. Foi quando percebi que a memória do crítico começava a se perder.
Neste último ensaio, o texto dava uma virada. O professor de inglês aposentado simplesmente saltava de um idioma ao outro: escreveu os parágrafos iniciais em português e do meio ao fim, em inglês.
LG, depois dos três textos acerca de “Marienbad”, foi muitas vezes ao Diário do Nordeste. Levava antigos artigos, a memória no papel, pois não havia mais escrito novas apreciações sobre cineastas e suas obras. Aos poucos, ficou arriscado para ele fazer as incursões à redação, como havia feito por décadas.
O personagem
Há tempos não tinha notícia de LG, mas nunca esqueci a sua figura. Quando entrei no jornal e passei a integrar sua equipe de cultura, 10 anos antes daquele episódio, ele já estava por lá. Entregava os textos para o caderno DN Cultura, do editor Carlos Augusto Viana, e conversava com o meu editor, o chefe do Caderno 3, José Anderson Sandes. Tinha a constituição robusta, barba e sobrancelhas fartas e grisalhas. Carregava balas de café nos bolsos e reclamava dos “gatinhos”, os erros textuais que perseguia obsessivamente.
Era um crítico de outros tempos. Parecia conhecer cada recôndito do vasto território da arte que o apaixonava. Um saber formado ainda quando as salas de cinema eram mais escassas e ainda não se achava “tudo na internet”. Conhecia atores, diretores, roteiristas e outros artistas que desempenham ofícios sobre os quais a maioria de nós nem sequer sonha.
O enredo
Tinha seus favoritos e era fácil de descobri-los, pois os revisitava com frequência. Nas alturas mais elevadas do panteão de LG de Miranda Leão, estavam Orson Welles e Stanley Kubrick. Welles, imagino, estava uma cabeça acima de Kubrick.
LG tinha uma história pessoal com ele. Lembra de ter sido levado pelo pai para acompanhar as filmagens do cineasta norte-americano no Ceará, no começo dos anos 1940. Era uma criança e via, deitado na areia, projetando ângulos para a câmera, o diretor de “Cidadão Kane”, filme que, por 40 anos, encabeçou a mais respeitada lista de melhores de todos os tempos.
Parecia enredo de filme. O menino que conheceu Orson Welles e viveu um amor da vida toda pelo cinema. Também caberiam num drama os últimos anos quando perdeu a memória e tantos filmes e histórias que o acompanhavam.
Vi “Marienbad”, com atraso e pela primeira vez, neste segundo lockdown. Verei outras vezes e não será estranho se eu vier a concordar com aquela aposta alta que LG fazia em nossos últimos encontros. Soube por sua filha, a jornalista Aurora Miranda Leão, que LG vive sem memória e, em setembro, chega aos 90 anos. Antes disso, em junho, comemoram-se os 60 anos do filme de Reisnais/Robbe-Grillet.
A memória se esvair é um destino particularmente trágico para um crítico. Não há crítica sem memória; não se faz um grande crítico sem uma memória prodigiosa.
A história da literatura é repleta de escritores que perderam a visão. Borges enganava a cegueira pedindo que outros lessem para ele. Não lembro de ter lido algo da tragédia dos críticos que perderam as bibliotecas ou as filmotecas que carregavam em suas lembranças. Não há truques que simulem, ainda que brevemente, uma memória artificial.
Se pudesse desejar algo ao velho crítico, antes mesmo de seus 90 anos, é que, no labirinto da desmemória, ele assistisse cenas de seus filmes favoritos, bem como outras tantas de sua vida, essas filmadas, quem sabe, por Kubrick, por Welles ou por Resnais. Cenas intensas, como se vistas no escuro pela primeira vez.