Nem tudo tem sido ouro nas Olimpíadas de Paris. Iniciada há meses, a disseminação orquestrada de uma fake news alegando que Imane Khelif seria uma competidora transexual desencadeou uma onda de ataques difamatórios à boxeadora argelina nas redes sociais. A desinformação atravessou a internet e culminou também em manifestações ofensivas de adversárias nos ringues, sob os olhos do mundo. Imane, que não é uma pessoa trans, experimentou então o desprezo amplamente naturalizado a este grupo social. Fomos todos a nocaute.
Algo curioso também vem acontecendo com Pabllo Vittar, cuja canção “Alibi” - fruto da parceria com Sevdaliza e Yseult - disparou nas paradas internacionais, alcançando a 12ª posição entre as músicas mais ouvidas no mundo através do Spotfy. Ao mesmo tempo em que vem galgando organicamente um hit global, a drag queen amarga há anos o boicote das rádios e contratantes públicos em seu país, além de denunciar a censura a seus videoclipes. Desde que emergiu como figura pública, Pabllo se tornou, sem dúvida, um dos principais alvos de campanhas difamatórias nas redes sociais.
Mas por que Imane e Pabllo Vittar incomodam tanto, se muito dos seus haters sequer já viram uma luta de boxe feminino e se não existe o consumo compulsório de qualquer produto musical? A resposta é relativamente simples: não se trata de uma suposta vantagem competitiva de Imane no esporte ou da qualidade musical de Pabllo, mas de como as orientações sexuais e as identidades de gênero não hegemônicas – sejam reais ou supostas – funcionam como catalizadores de ódio.
Na medida em que lideranças e personalidades LGBTI+ adquirem visibilidade e recusam o lugar de subalternidade, os espaços online podem se tornar tribunais populares de penalização moral, cujas sentenças de injúria, perseguição, ameaça e de “cancelamento” estão acessíveis à promulgação por qualquer um que esteja conectado.
É assustadora a naturalização e/ou a conivência social para com violências com tamanho potencial de impacto na saúde mental de pessoas. Concedi recentemente uma entrevista ao podcast Que Nem Tu, do Diário do Nordeste, e me chamou atenção a quantidade de pessoas dispostas a promover o linchamento virtual em publicação como aquela. Tive minha humanidade, identidade e cor desqualificadas por pessoas que, posicionadas atrás de telas, se apoiam num delirante senso de incondicionalidade da liberdade de expressar e se sentiram autorizadas e confiantes a fazê-lo, diferente do que observei, por exemplo, quando da participação de outros convidados cisgênero e heterossexuais.
A forma como pessoas LGBTI+ são vítimas preferenciais e cotidianas do escárnio em ambientes virtuais escancaram (em velocidade 5G) a LGBTI+fobia e o racismo como alicerces das relações sociais vigentes, sendo importante nominarmos tais violências sem rodeios e refletirmos sobre o papel do Estado e de cada indivíduo na construção de espaços virtuais e analógicos mais seguros e acolhedores.
Muito se tem falado sobre regulação da internet, sobre a necessidade de aprimoramento do sistema de repressão a crimes cibernéticos, de avanço no marco legal de criminalização da LGBTfobia, enfim... são várias as possibilidades de debate em torno do tema e é certo que não existem receitas mágicas para problemas estruturais. Uma questão fundamental nesse processo, contudo, é não esquecermos que, embora se propaguem em plataformas eletrônicas, o linchamento/“hate” direcionado a pessoas LGBTI+ não se descola da materialidade da vida, mas tão somente reflete e reforça a existência de uma realidade cruel para as populações LGBTI+. Nos cabe agora enxergar além das telas o que as telas mostram sobre nós.
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