Eu, mulher, doutora e pesquisadora, como me sinto com o bloqueio de verba no MEC

Essas rendas são imprescindíveis, legítimas e absolutamente necessárias

Legenda: No Ceará, cerca de 2,5 mil alunos podem ser afetados
Foto: Thiago Gadelha

"Eu achava que era difícil ser doutora no Brasil, mas no meio do processo de doutorado, eu descobri que talvez fosse impossível". Essa frase está em uma das páginas do meu diário pessoal, que mantenho ainda escrito à mão quando quero divagar sobre a vida - para mim mesma. É o fragmento de um texto que fiz enquanto devaneava sobre minhas travessias.  E volto a essa página quando me deparo com essas notícias de que cerca de 200 mil estudantes pesquisadores no Brasil estão sem receber suas bolsas.

Cenário daquela época: eu estava mergulhada na minha pesquisa; convivendo com o caos sanitário e emocional da pandemia; diante de um contexto social de desacertos políticos; longe do meu campus universitário e enfrentando uma solidão bem típica de quem faz pesquisa, a da escrita e das dúvidas sobre as quais não temos respostas e nem como alcançá-las - sobre a tese, sobre a vida.  

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Embora reconheça que eu me encontrava numa situação de privilégios, principalmente por ter tido a possibilidade de estar isolada, com uma renda fixa em grande parte do tempo de estudo, matriculada em um  curso de doutorado de uma universidade federal - ambiente ao qual poucas pessoas têm a regalia acessar - só eu sei as inconstâncias que enfrentei para conseguir concluir a pesquisa. Consegui e nunca me arrependi de nenhum passo dado.

Ao longo dos anos do doutorado, vivi momentos de incertezas, fiquei sem dinheiro - nunca tive bolsa -, senti dificuldades com a pesquisa de campo, tormentos para conciliar atividades extras com as da pesquisa, necessidade de acessar outros ambientes os quais eu precisava estar para conseguir prosseguir com meu texto, tive problemas familiares, doença, saudades, solidões, silêncios. Pressões de distintos lados. Conflitos de muitas naturezas para continuar a travessia. 

Eu, que dissertei na tese sobre arte de rua, memória, cidade e política, acerca de dilemas sociais históricos que atravessam os processos artísticos no meio da rua, acabo voltando à minha pesquisa quando mais uma vez me deparo com essas faltas, dores e solidões da população. São questões não sanadas por políticas públicas, e que têm a arte como aliada, quando escancaradas no meio do mundo entre painéis de arte, por exemplo, disseminando vozes diversas vezes caladas.  

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Legenda: Essas rendas são imprescindíveis, legítimas e absolutamente necessárias, no campo prático e de curto prazo de quem precisa comer e sobreviver
Foto: Agência Brasil

E se eu, envolta num cenário de privilégios, enfrentei só algumas das dores de tantos que fazem pesquisa no Brasil, tenho me deparado nesses últimos dias com a inquietação de imaginar como devem estar apreensivas as pessoas que até hoje, 6º dia útil do mês, dezembro, ainda não receberam suas bolsas, seus salários mensais. Dentre elas, mulheres, mães, esposas, filhas, empregadas ou não, saudáveis, doentes, arrimos de família… que se deparam com uma espécie de sequestro súbito de suas rendas. 

Essas rendas são imprescindíveis, legítimas e absolutamente necessárias, no campo prático e de curto prazo de quem precisa comer e sobreviver; no campo simbólico e a longo prazo de quem investe tempo, conhecimento, esforços e quer contribuir com a mudança social no nosso país, com o avanço da Ciência e da Educação. De quem acredita, ou mesmo tenta.   

A todas essas pessoas, minha solidariedade! 

Questiono-me: que espécie de contexto é este no qual precisamos dizer ao mundo, lamentar, insistir e justificar o pagamento de uma renda para quem está pesquisando, trabalhando? Para onde estamos caminhando se o mínimo tem sido cada vez menos possível e a descrença nas instituições cada vez maior? A quem recorrer quando falta pão, política, esperança? Mais uma vez, solidarizo-me!




 

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