Às vezes me pego contando a quantidade de falas machistas que ouço quando estou em meio a qualquer dezena de pessoas desconhecidas - ou não. De uns tempos pra cá, passei a tentar reconstruir frases ou devolvê-las (em silêncio) aos seus autores, e imaginar as reações e impactos que isso teria ao meu redor. Nada parece combinar ou fazer sentido pra mim porque me deparo com narrativas de absurdos.
Não vou aqui repetir as frases porque não quero disseminar as violências as quais sofremos todos os dias, mas desejo chamar a atenção para que nós, mulheres, cada vez mais possamos nos comprometer a desnaturalizar os ataques, que sofremos em vida, e muitas de nós depois de mortas, com discursos e ações que atentam contra quem somos.
A desumana "tese da legítima defesa da honra" - declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal federal (STF) nesta semana -, desrespeita, há pelo menos 400 e tantos anos, vítimas em vida e também em seus leitos de mortes, atacando a memória de mulheres que, agredidas e assassinadas, ainda são enterradas e invisibilizadas carregando para seus túmulos, além das marcas de pancadas, transtornos psíquicos e muitos mais, a culpa de terem sido vitimadas.
A tese da "legítima defesa da honra", desde a chegada dos colonos portugueses ao Brasil, é utilizada por advogados que defendem agressores em casos de feminicídio ou ataques contra mulheres para justificar o comportamento do acusado.
Desta forma, o argumento era de que o assassinato ou a agressão eram aceitáveis quando a vítima tivesse cometido, por exemplo, um adultério, pois, diz a tese, essa conduta estava ferindo a honra do agressor.
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É como observou a ministra Cármen Lúcia, ao votar a favor da derrubada do argumento: “a sociedade ainda hoje é machista, sexista, misógina e mata mulheres apenas porque elas querem ser donas de suas vidas”.
Pensar sobre há quanto tempo aguentamos os reflexos do machismo em nossa pele, nossa mente, nossa cultura e nossas rotinas é compreender que tudo isso cria uma grande rede de derrotas que, feito um vírus avassalador, mexe com as nossas vidas em praticamente todos os setores: segurança, saúde - física e mental; educação, profissão e relacionamentos de diversas ordens, tanto em amorosos, familiares e de trabalho, assim como a nossa relação com nós mesmas.
Basta lembrar que somos todos interligados em grande teia que nos conecta em vários sentidos, tornando nossas ações e reações, respostas e descobertas em fluxos contínuos que perpassam as nossas formas de amar, estudar, trabalhar, gerar descendentes - ou não - e disseminar comportamentos. Se naturalizamos as violências que sofremos dia-a-dia, abrimos espaços para novas aberrações dominantes que nos imputam todas as culpas, na vida ou na morte.
E, ao nos imputarem essas culpas, colocam também sobre nós o fardo de vermos nossas bisavós, avós, mães, tias, primas, irmãs, amigas, filhas, afilhadas terem sido, e ainda serem, cerceadas em direitos como os de estudar, escolher carreira, ter paridade salarial, igualdade de direitos e deveres dentro e fora de casa e até mesmo em ações comuns como dirigir um carro.
Mulheres empurradas a viverem rotinas e histórias marcadas pelos discursos de que somos propriedade de alguém.
Portanto, a decisão do STF de derrubar a "tese da legítima defesa da honra", ou seja, aquela que há séculos tem dado aos homens muitas chances de serem justificados por crimes que atentam contra as nossas vidas, é mais um passo para que toda pessoa tenha a total compreensão de que não podemos deter a construção de uma cultura de igualdade de direitos.
Além da nossa dignidade ferida, já tivemos muito tempo - e vidas - perdidos, mas conseguimos, agora, uma chance de entregar às novas gerações de mulheres o direito de já nascerem não mais carregando nos seus corpos a responsabilidade de estar todos os dias mantendo a honra de qualquer homem que seja.