Como as queimadas no Brasil mudam as nossas histórias para além das perdas ambientais
Na minha infância, o azul do céu virava cortina para o desfile de camaleões* que ocorria no muro pela metade do quintal da casa onde morava, numa cidade no sudeste do Pará. Sentava no batente para contá-los, mas, às vezes, me distraia mesmo era com uma nuvem camaleoa virando bichos brancos-algodão, com contornos sinuosos.
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Numa tarde entediante, dei folga aos camaleões, peguei duas cadeiras, coloquei uma sobre a outra, subi, alonguei os braços e tentei tocar o céu. Acreditava estar próxima, mas não foi o suficiente. Teimei mais um pouco, ficando na ponta dos pés, até o móvel cambalear. Continuava distante. Era intocável.
Não lembro como me senti. Mas, naquele tempo, havia um mundo inteiro ali, no meu quintal, onde exalava o cheiro de um gigante pé de taperebá (cajá no Ceará), onde tinha mata do outro lado do muro que talvez servisse de refúgio para a Caipora ou para o Curupira, onde acontecia show diário de répteis com rabos capazes de desenhar caracol.
Era mesmo de se conformar com a contemplação do céu. Ser feliz é um ritual simples que se perde no cotidiano da vida adulta de uma sociedade capitalista. No livro “A vida não é útil” (p.24), o filósofo Ailton Krenak explica que seu o povo observa o céu e a terra para ficar perto dos outros seres.
E, na primavera, quando o firmamento dos astros se aproxima do chão, os indígenas praticam o rito taru andé, com danças e música para suspendê-lo.
“Suspender o céu é ampliar os horizontes de todos, não só dos humanos. Trata-se de uma memória, uma herança cultural do tempo em que nossos ancestrais estavam tão harmonizados com o ritmo da natureza que só precisavam trabalhar algumas horas do dia para proverem tudo que era preciso para viver”, escreveu.
Parei para refletir sobre a beleza disso tudo quando vi as queimadas no Amazonas e no Pantanal enfeiando o teto da terra. Pensei: o céu não está mais intocável. Todos os incêndios florestais registrados são frutos de ações humanas, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
O homem conseguiu exterminar vasta área verde, sequestrar o azul. Tudo isso para abrir espaço para a pecuária e para o garimpo ilegal. Manchou de cinza os instantes nos quais as crianças poderiam se enredar com o céu para além da observação dos aviões, interrompeu as histórias a serem imaginadas e alguns aprendizados fora da escola.
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A fumaça que cobriu o Ceará, onde médicos alertaram sobre o risco de provocar doenças, passou também pelo Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Acre, Rondônia, oeste do Paraná, parte de Minas Gerais e trechos de São Paulo e do Amazonas. Nessa segunda-feira (27), em São José do Xingu, no Mato Grosso, um brigadista morreu enquanto tentava cessar o fogo. Uma tragédia ambiental e humanitária.
É imperativo investigar se há e quais os negócios por trás dessas queimadas, cobrar responsabilidades, implementar medidas eficazes para prevenir novos casos e pressionar mudanças, mas também promover uma reflexão profunda sobre nosso passado e futuro.
*No Brasil, não há camaleões nativos considerados verdadeiros por não pertencerem à família Chamaeleonidae, mas o lagarto iguana é popularmente chamado de camaleão. Essa iguana pode ser encontrada na Amazônia e no Nordeste.
Empresários assumem pacto pela natureza
A luta contra o desmatamento também é de responsabilidade do empresariado. Diante das últimas tragédias ambientais, nessa quarta-feira (28), um grupo de empresários e economistas assinou o manifesto "Por um pacto econômico com a natureza”.
“O empresariado e os Três Poderes precisam se unir o quanto antes para encarar esse desafio, em uma coalizão em defesa do nosso meio ambiente, da nossa economia e da prosperidade da nossa população”, diz o documento. Ao todo, foram 53 signatários.
Não basta assinar um manifesto, claro. É necessário mostrar como as empresas irão assumir esse compromisso de maneira transparente e efetiva, mas esse já é um passo importante.
Leia o manifesto e veja quem são os empresários:
"A catástrofe humanitária no Rio Grande do Sul e o recorde de focos de incêndio no Pantanal tornam ainda mais urgente a necessidade de unirmos esforços para enfrentar os desafios impostos pelas mudanças climáticas.
Não é justo, porém, empurrar todo o ônus para o Poder Público. E não é produtivo gastar tempo apontando culpados, caçando bruxas. Todos os brasileiros temos a responsabilidade de transformar a dor em esperança e de repensar hábitos e processos.
Entendemos que cabe à iniciativa privada acelerar a adaptação da nossa economia à nova realidade do clima. Seja porque atuais fontes de geração de riqueza no país estão sob risco, seja porque uma mobilização de conformidade ambiental dará acesso a mais recursos e mercados.
Um pacto econômico com a natureza impulsionará a nação no cenário global. Temos vantagens competitivas que nos são exclusivas e de que o mundo necessita. Podemos gerar renda e empregos e, ao mesmo tempo, preservar as áreas verdes e transformar espaços urbanos.
Em 2025 o Brasil será anfitrião da COP, fórum global que discute o enfrentamento da crise climática. É fundamental que o país construa com profundidade e velocidade as diretrizes e metas de um plano nacional de descarbonização para ser levado ao evento. O empresariado e os Três Poderes precisam se unir o quanto antes para encarar esse desafio, em uma coalizão em defesa do nosso meio ambiente, da nossa economia e da prosperidade da nossa população".
- Álvaro de Souza
- Ana Maria Diniz
- Ana Paula Pessoa
- Anis Chacur
- Antônio Mathias
- Arminio Fraga
- Betânia Tanure
- Candido Bracher
- Daniel Castanho
- David Zylbersztajn
- Eduardo Bartolomeo
- Eduardo Sirotsky Melzer
- Eduardo Vassimon
- Elie Horn
- Eugênio Mattar
- Fabiana Alves
- Fabio Barbosa
- Fernando Simões
- Guilherme Benchimol
- Guilherme Leal
- Guilherme Quintella
- Jayme Garfinkel
- Joaquim Levy
- José Alberto Abreu
- José Berenguer
- José Luiz Setúbal
- José Olympio Pereira
- Hélio Mattar
- Horacio Piva
- Irlau Machado
- Luiz Fernando Furlan
- Marcelo Bueno
- Marcelo Kalim
- Marcos Molina
- Maria Silvia Bastos
- Paulo Caffarelli
- Paulo Hartung
- Paulo Kakinoff
- Paulo Souza
- Pedro Bueno
- Pedro de Camargo Neto
- Pedro Parente
- Pedro Passos
- Pedro Wongtschowski
- Ricardo Marino
- Roberto Klabin
- Roberto Rodrigues
- Rodrigo Galindo
- Rubens Menin
- Rubens Ometto
- Tito Enrique
- Silva Neto
- Walter Schalka.