O que o possível Oscar para o Ken diz sobre os nossos tempos e o feminismo

As barbies que recuperaram a autonomia no filme ficaram fora da principal premiação de cinema no mundo real, que ainda precisa percorrer um longo caminho para a igualdade de gênero

Legenda: Agora, ver a notícia de que Ryan Gosling foi indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante pelo seu Ken e notar que Margot Robbie, a intérprete de Barbie, e a diretora Greta Gerwig estão fora é no mínimo irônico
Foto: Divulgação/Warner Bros

Acompanhei distante dos cinemas todo o alvoroço com o filme Barbie e o mundo cor de rosa que saía das telas com algum tom de feminismo. Só consegui de fato ver o filme quando chegou nas plataformas de streaming. Estava muito curiosa e já tinha lido algumas críticas, mas uma cena em especial me incomodou: na reta final do filme, quando as mulheres retomam a Barbilândia e Barbie precisa consolar o Ken após ter falhado na tentativa de reproduzir ali os privilégios que os homens detêm no mundo real.

Restaurada a autonomia das barbies, Ken cai num choro inconsolável, e Barbie vai conversar com ele. "Foi difícil mandar em tudo. Eu não gostei, não", ele diz. "Eu te entendo", ela responde, enquanto ele explica ter perdido o interesse no patriarcado. Barbie então se desculpa por não ter valorizado Ken e o anima a assumir sua identidade para além dela. Ok, um discurso até motivacional, mas conectado a todo o debate sobre o patriarcado, o filme me pareceu colocar o homem mais uma vez ao centro. Coube a Ken levar o enredo e os conflitos mais complexos no filme. Para mim, foi ele mesmo o protagonista.

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Agora, ver a notícia de que Ryan Gosling foi indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante pelo seu Ken e notar que Margot Robbie, a intérprete de Barbie, e a diretora Greta Gerwig estão fora é no mínimo irônico. Afinal, Ken preferiu o mundo real justamente porque é lá que a masculinidade manda e que homens brancos gozam de privilégios simplesmente por serem homens brancos.

É só mais uma pecinha num enorme quebra cabeças que mostra, todos os dias, que a distância ainda é longa para vencermos os patriarcado num mundo em que mulheres são assassinadas pela violência machista, ganham menos no mercado de trabalho e precisam fazer o impossível diariamente na luta pela autonomia e por espaço nas mais variadas profissões.

Um passinho de cada vez e vamos seguindo. Será que agora vamos conseguir pelo menos nos aproximar da "ousadia" de tentar furar o teto de vidro? A partir desta segunda, todas as empresas com mais de 100 funcionários serão obrigadas a comunicar ao Governo Federal os salários e cargos de seus empregados, homens e mulheres. As informações vão compor um relatório do Ministério do Trabalho e Emprego, previsto na lei 14.611, promulgada ano passado, para cuidar da obrigatoriedade de igualdade salarial entre homens e mulheres. A ver os frutos que teremos.

Mas a mudança precisa ser, acima de tudo, cultural: o feminismo não é guerra de gênero. É luta por igualdade de direitos e reparação histórica em um sistema que oprime mulheres diariamente. No mundo real, não precisamos necessariamente resgatar a Barbilândia ou ridicularizar Kens (homens), mas é urgente construir uma sociedade diferente, na qual possamos andar na rua sem medo do estupro. Um mundo em que não tenhamos que fazer o dobro para conseguir o mesmo resultado no trabalho simplesmente por não sermos vistas e respeitadas. Um mundo com mais autonomia e liberdade, menos violento.

É por isso que a indignação com aquela cena consolando o Ken segue com a irônica ausência das mulheres do filme no Oscar. O mundo real é muito difícil mesmo.