A Pandemia nos confrontou com experiências ainda sem elaboração e tradução. As vivências de medo, dor, perdas, lutos, descobertas, reinvenções, esperança e sobrevivência estão presentes em cada um e em todos com nuances específicas, de acordo com a idade, situação financeira, suporte social, rede de apoio, atividade profissional, estado de saúde, perdas e recursos protetivos.
Profissionais de saúde, professores, crianças, adolescentes, idosos foram confrontados com emoções que talvez ainda não tenham sido adequadamente pensadas nem sentidas.
Um grupo entretanto, carregará a memória da pandemia com efeitos críticos sobre a vida: os órfãos por Covid-19.
A orfandade é sempre uma experiência profunda e complexa onde um sujeito se perde e se encontra continuamente, onde fantasmas e histórias são revisitadas, onde medo, dor, raiva, culpa, solidão e esperança disputam territórios afetivos na alma. Perder as figuras parentais nunca é fácil.
Saber-se sem os pais evoca um misto de desamparo e confrontação com a autonomia para seguir. Independentemente da idade que se tenha, ninguém está preparado ou indiferente para esse luto que remonta nossa história e nosso devir.
Veja também
Quando as perdas ocorrem na infância ou na adolescência, existem outros atravessamentos mais intricados. As figuras parentais são importantes para a oferta de cuidados, proteção, ajuda na apresentação e tradução do mundo, a ler a realidade, a compreender limites, perceber os outros, integrar emoções, saber quem somos e nos ajudar a pertencer a um coletivo, a uma família.
Oferecem suporte para a mediação do mundo, para o desenvolvimento da linguagem, do pensamento, da criatividade, para a garantia da efetivação dos processos de desenvolvimento , para o acesso às políticas públicas, para obtenção de documentos, matrícula em escola, vacinas, cuidados em saúde e para o acompanhamento de um mundo interno que se possa chamar de seu; onde seja possível existir, se reconhecer e diferenciar.
Perdas das figuras parentais na infância encontram-se entre fatores de risco para depressão e suicídio, muitas vezes porque o abandono diante da ausência dessas figuras pode levar crianças e adolescentes a ambientes hostis, à falta de rede de apoio consistente em cuidados e presença afetiva, ao senso de despertencimento e invisibilidade existencial.
Além disso, a ideia de morte nem sempre encontra explicações e compreensões dentro das possibilidades de desenvolvimento das crianças, podendo ocasionar silêncios que alimentem fantasias de culpa ou responsabilidade com o ocorrido.
Nem sempre os adultos conseguem se comunicar e explicar para as crianças e adolescentes assuntos que envolvem questões como violência, perdas, lutos, dores, sexualidade. Muitas vezes, as incertezas que irão envolver crianças e adolescentes podem alimentar medo em relação ao futuro, embrutecimento, indiferença afetiva e blindagens emocionais.
As perdas na Pandemia foram repentinas, sem direito a rituais ou despedidas. E rituais são fundamentais para elaborar o vivido e fortalecer a rede de apoio.
Quem vai explicar, acolher o choro, contar histórias, colocar para dormir, estar presente na hora do medo, referenciar transgeracionalmente, quem responderá às perguntas destinadas às figuras parentais, quem ajudará a compreender os absurdos da existência, a brincar, a oferecer experiências de lazer, quem identificará a necessidade de cuidados em saúde?
Quem estará presente nas reuniões de escola e acompanhará o desenvolvimento dos sonhos e dos projetos de vida? Quem acolherá a raiva sem retaliar? Quais os ombros e abraços para procurar? Quem contará a minha história? Em quem confiarei? Quem oferecerá lições sobre o amor?
Quem providenciará o material escolar, a comemoração do aniversário? Quem recolherá os dentes de leite? Quem ficará acordado esperando a febre baixar? Quem aceitará o trabalho do cuidar pela recompensa da vida, da saúde e do amor de quem importa?
Crianças e adolescentes são seres em desenvolvimento com necessidades afetivas, sociais, psíquicas, biológicas, culturais, materiais e que precisam de consistência e continuidade de um ambiente protetivo e cuidadoso com figuras de referência estáveis.
Quando não existem políticas públicas para acolher, proteger, cuidar e garantir um plano de cuidados longitudinais, intersetoriais e interseccionais para esses sujeitos, que estão há mais de três anos nessa condição - que segundo estimativa da AOCA (Articulação em Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes pela COVID-19), são entre 8 a 10 mil crianças e adolescentes - revela-se o descaso com os que mais precisam da proteção do Estado e denuncia a falência de um projeto social incapaz de cuidar.