Quando o jogar deixa de ser uma diversão para ser uma dependência
O brincar faz parte da experiência humana e da própria construção humana. Através das brincadeiras elaboramos o mundo, compreendemos relações, dialogamos com perdas, construímos a imagem de quem somos, aprendemos a pensar e a falar o mundo, interagimos, produzimos sonhos e esperança. No manuseio dos objetos, apresentado por cada sociedade, as crianças vão lidando com a cultura, com os afetos e construindo vínculos. Também irão alimentando desejos e fantasias.
Os jogos ao longo da história já foram utilizados para resolver conflitos, disputas de poder, na lida com questões amorosas, construindo um percurso intrincado com a própria produção do humano. A criação, a espontaneidade que está na origem do brincar precisa ser alimentada e fortalecida para produzir sujeitos capazes de lidar com a vida.
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O gosto pelo brincar permanece em todos por toda a vida. Transferimos o brincar infantil para outras atividades: para o trabalho, para a arte, para o cotidiano. Continuamente criamos e fazemos fugas da realidade, modificando, reelaborando, destruindo, produzindo alternativas para alimentar o prazer e lidar com o duro do existir.
Todo dia sonhamos, fazemos pausas na realidade para deixar correr o riso, escapar a tristeza, desviar a raiva e outras torrentes de emoções, que encontram no brincar uma possibilidade de existir e ressignificar. Nos roteiros dos jogos, crianças e adolescentes possuem a chance de resolver e lidar com desafios complexos de uma forma protegida, obtendo controle para mudar de nível e resolver enigmas, que na vida podem ser inviáveis naquele momento.
No jogo é permitido mudar configurações estéticas, identitárias, sexuais, roteiros existenciais, crescer, ser popular, fazer amigos, conquistar e resolver problemas que antecipam realização de desejos frustrados no cotidiano. Infelizmente, os desejos residem no brincar, podem ser apropriados pela indústria da manipulação com o intuito de gerar lucros astronômicos, alimentados pelo desejo de poder, riqueza, mudanças e fugas da realidade.
Carências, insatisfações, frustrações, desejo de solução rápida para problemas complexos, impulsividade, dificuldade de lidar com emoções, perdas, medos, fragilidades podem virar combustível para os comportamentos problemáticos diante do jogo.
“Influencers”, donos de empresas de jogos não estão preocupados com o seu bem-estar. O desejo é obtenção de lucro e a criação de padrões de jogo e algoritmos que mobilizem esses desejos e a ideia atrelada à satisfação desses desejos através do jogo. Entretanto, passada a excitação da aposta e do êxtase do zerar o jogo ou mudar de nível, os problemas permanecem ou se agravam porque a realidade não sucumbe aos desejos da fantasia.
Muitas pessoas podem ter problemas financeiros, familiares, de relacionamento, podem ficar de forma obsessiva apostando continuamente, movidos pela ideia de que uma hora irão ganhar. E nisso, as reservas de toda uma vida podem ser usadas para alimentar as fantasias do “ só mais uma vez”, “dessa vez vou ganhar”, “sinto que hoje é o meu dia”, até chegar a um quadro onde não é mais possível dispor de nenhum recurso para usar nas apostas.
Segundo a OMS, 8,7% da população mundial tem problemas de vício com apostas. No Brasil, o Banco Central considera que são gastos por mês, 20 bilhões em apostas "bets", sendo 3 bilhões referentes a 5 milhões de pessoas que integram o Programa Bolsa Família.
Por trás destes números escondem-se desigualdades e vulnerabilidades sociais onde a precarização da vida alimenta o desejo de mudança de forma rápida, e a dureza da existência, se oferece para os algoritmos da sedução do mercado em sua sede de prazer imediato e ilusório. O endividamento cria um espaço que aumenta ainda mais o buraco da solidão, da tristeza, do desamparo e que revela os sonhos que vivem nas apostas: que podem ir desde a conquista da casa própria, uma escola melhor para os filhos, viagens, uma vida que só seria possível através de uma mágica que o trabalho não poderá fornecer.
Em 2018 a Organização Mundial de Saúde passou a designar o vício em jogos eletrônicos como uma doença. O que acontece quando se perde a capacidade de ter controle sobre o jogo, passando a negligenciar cuidados consigo, afastamento das atividades presenciais, problemas de sono, alimentação, dificuldades de relacionamento interpessoal, dificuldades de concentração, memória, prejuízos escolares e profissionais, que podem camuflar problemas mais graves como depressão. Muitas vezes, a inserção no mundo dos jogos encontra-se relacionada a momentos de perdas, dores existenciais que buscam fugas e experiências de prazer imediato. Somos sujeitos de fantasias, de ilusões, e diante de realidades dolorosas, alternativas mágicas são sedutoras.
Enquanto problema de saúde pública, é necessário o fortalecimento de políticas públicas que auxiliem no fortalecimento da identidade, na diminuição das desigualdades sociais e na possibilidade de um sonhar alicerçado na esperança possível. Além disso é importante que pensemos: do que desejamos fugir e o que desejamos conquistar quando apostamos? O que nos inquieta que buscamos resolver através de soluções mágicas e ilusões de onipotência, que revelam mais nossa fragilidade que nosso controle sobre o mundo ?