A negação da infância
As crianças precisam de cuidados e proteção. Entretanto, diante da negação, são muitas vezes tratadas enquanto adultos em miniatura
A infância mobiliza nosso desamparo, nossa necessidade de cuidados, de oferecer contenção à nossa destrutividade, ter paciência para alimentar e garantir o desenvolvimento, educar, revisitar a história do nosso nascimento e de nossa família, ser capaz de ver o outro, ser desafiado, precisar dedicar tempo que permita ao outro nascer, não somente física mas social e psiquicamente.
A infância desafia os ideais narcísicos, onipotentes, a ideia de controle, e convoca os seres humanos a um trabalho dedicado e intenso que mobiliza cansaço, raiva, tristeza, frustração concomitante à alegria, prazer, satisfação e parceria na criação do humano.
Uma criança necessita de pais dedicados, que possam entender que a exigência desde a gestão, parto e desenvolvimento daquele ser, demandará presença e mudanças na rotina e na vida.
Muitos adultos negam o fato de que cresceram e passam a disputar com os filhos as demandas por cuidados. Uma criança pode assustar os adultos em aspectos inconscientes da própria infância. O desamparo do bebê, o choro, as angústias, podem revelar as falhas e inconsistências dos adultos supostamente seguros.
Os pais sentem-se vulneráveis diante do nascimento de um filho: não sabem ainda como segurar, entender, como oferecer os cuidados adequados diante daquele que ainda não fala e é totalmente dependente da responsabilidade e cuidados dos adultos. Ter alguém dependente de si pode assustar tanto aos adultos, que ocasione a negação da dependência ou da responsabilidade com os filhos.
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Diante de um contexto narcísico que impossibilita a relação com o outro; pois não sou eu e o outro, sou eu ou o outro, torna-se escasso o espaço para a diferenciação, e o constituir-se das crianças torna-se um desafio: como elas podem existir e se tornarem possuidoras de uma subjetividade e identidade e não somente serem uma projeção, ou um boneco sem vida, clone dos pais?
As crianças precisam de cuidados e proteção. Entretanto, diante da negação, são muitas vezes tratadas enquanto adultos em miniatura e jogadas à própria sorte sem os recursos necessários para identificar perigos e obter auxílio nas escolhas e compreensões do viver. A violência contra as crianças, a exploração sexual, a solidão, a oferta de distrações tecnológicas e o incentivo ao consumo a que são submetidas desde o início expressam essa negação, essa raiva dos adultos que compromete a perspectiva de futuro da própria humanidade.
A infância confronta os pais à tolerância, resiliência da capacidade de integrar e reconhecer sentimentos complexos e ambíguos compreendendo que os mesmos fazem parte da existência necessária das relações entre pessoas. Entretanto, o apagamento da infância gera vazio, descaso e negligência e muitas vezes encontra-se velado sobre um abandono disfarçado de autonomia.
É preciso tempo para brincar, para perceber, para olhar, para conhecer os amigos, para apresentar o mundo. Para ser sensível às peculiaridades de cada criança e apresentar o ambiente com delicadeza e suporte.
Quais as estratégias de políticas públicas para apoiar famílias, pais, mães, quantas violências que se iniciam desde a gestação e perduram nas violências obstétricas? Como a sociedade olha para o infantil? Como proteger? Como garante seu desenvolvimento?
Um filho não é um objeto de consumo, é um ser humano, com sensações, sentimentos, impulsos que precisarão de acolhimento e ajuda para serem integrados, compreendidos, assimilados. Um filho pode não ser capaz de atender às expectativas e projeções dos pais e não pode ser visto como negócio, ou um planejamento de futuro que não envolve a participação do próprio filho. Uma criança não tem recursos para suportar a violência, a indiferença.
Quando negamos a infância, pode ser muito fácil aceitar a eliminação, as mortes, a ausência de cuidados. A negação é o primeiro passo para a invisibilidade. Quando não vemos o que as crianças necessitam, sacrificamos o direito de existir de toda a humanidade e uma parcela valiosa da existência dos adultos, que têm os sonhos, a criatividade e a esperança esvaziadas e a alma embrutecida.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.