A formiga e a cigarra: a necessidade de integrar o diverso na identidade

É preciso dialogar com a multiplicidade, as ambivalências e paradoxos que nos habitam. Perceber que em nós habitam formigas e cigarras.

Escrito por
Alessandra Silva Xavier producaodiario@svm.com.br
(Atualizado às 11:10)
Legenda: Disciplina e trabalho organizam a vida, mas não devem excluir arte, lazer e prazer, dimensões que também sustentam a existência humana
Foto: Shutterstock

Crescemos ouvindo histórias, parábolas, narrativas do real que passam a ordenar o mundo, a forma de ser e agir. Nesse entrelaçado de falas, vamos construindo nossa identidade, a qual embala um jogo do que muda e permanece na forma de nos pensarmos, existirmos e definirmos. 

Embora as fábulas tenham sua origem no oriente, com os assírios, babilônios e sumérios, e tenha sido bastante desenvolvida pelo budismo e utilizada na China e Índia, a entrada deste gênero literário no ocidente, é atribuída a Esopo, escritor Grego (620 a.C). As fabulas possuem a intenção de oferecer uma lição de moral e propor reflexões éticas, geralmente a partir de histórias envolvendo animais.

A história da formiga e da cigarra, uma das muitas narradas por Esopo, conta a história de uma formiga que trabalha incansavelmente coletando alimentos, para garantir a sobrevivência no inverno e a cigarra, que aproveita o verão cantando e tocando.

A cigarra questiona à formiga sobre o excesso de trabalho. Quando chega o inverno, a cigarra com fome e frio vai pedir ajuda à formiga, que dependendo da versão da história, a acolhe ou a rejeita e abandona às consequências de suas escolhas.

A moral da história seria a valorização da ideia de disciplina e trabalho, enquanto importantes e organizadoras para a vida. Entretanto, parece cindir aspectos da vida que deveriam ser integrados, como se a arte, o lazer , o prazer, fossem aspectos destrutivos que não acrescentarão nada à vida e que não contribuiriam com outras dimensões igualmente importantes e necessárias à sobrevivência que não somente a material.

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A associação nefasta, como se arte não fosse trabalho, como se aproveitar a vida fosse merecedor de castigo e punições e como se o mundo se dividisse em dicotomias e cisões e como se a própria subjetividade não precisasse integrar aspectos saudáveis e adoecidos, agressividade e reparação, prazer e tristeza, passividade e atividade, entusiasmo e preguiça e tantas outras pluralidades do que nos compõe.

A formiga que se recusa a ajudar e a dividir, baseada na acumulação, constrói a ideia de que apenas com o esforço pessoal, é capaz de construir riquezas e que essas não devem ser partilhadas. Além da desvalorização do trabalho que não seja para gerar acúmulo e bens materiais.

Defende uma ideia de que o trabalho e as conquistas por esforço não devem ser socializados e que a solidariedade não tem espaço diante do sadismo e da sobrevivência. Reforça uma ideia de meritocracia que ataca os vulnerabilizados e que precisam de ajuda e acentuando uma exclusão entre os que trabalham e os que vivem.  

Existem pessoas inconsequentes, irresponsáveis e que buscam viver às custas do trabalho alheio? Claro. E como elas chegaram nesse lugar? E quais as medidas jurídicas para quem deseja se apropriar indevidamente? Temos todo um aparato jurídico valioso para esses casos. Não é cair em um relativismo simplista e sem referências. É compreender a importância do contexto e da interpretação do que acontece.  

A questão aqui, são os danos que a cisão dos opostos provoca na vida e na personalidade. Uma vida somente de rigor, trabalho, disciplina sem leveza, sem arte, sem descanso, sem poder aproveitar o presente, vivendo apenas no planejamento do futuro pode ser adoecedora. 

Seria interessante pensar no provável Burnout, problemas cardiovasculares, hernia de disco da "formiga", a dificuldade em ter férias,  descansar, usufruir das artes, experimentar prazer, sentir-se culpada quando descansa, quando não está envolvida em algo “produtivo”. Em outras versões, a formiga acolhe a cigarra e as duas partilham o trabalho, os recursos e os talentos, acrescentando e ampliando as vidas de ambas.

Encontrar possibilidades de integrar a leveza e o trabalho, o descanso, as férias e a responsabilidade, a seriedade e relevância da arte e da criatividade para a vida, a harmonia entre solidariedade e recursos, pode nos permitir pensar no perigo dos extremos e como a rigidez de ideias pode ser adoecedora.

A identidade é o que muda e permanece, que nos ajuda a construirmos um sentido de que existimos para nós e para os outros, onde encontramos consistência para sermos vistos, respeitados e admirados. 

Quando internalizamos ideias rígidas de cobrança, punição, disciplina rigorosa, exigência, o custo pode ser muito alto, pois passamos a negar experiências que conflitam com outras possibilidades de ser e sentir, inclusive quando é esse o verdadeiro desejo e necessidade, ou seja, quando necessito descansar, parar, me divertir, mesmo após trabalhar muito e não me permito. 

É preciso dialogar com a multiplicidade, as ambivalências e paradoxos que nos habitam. Perceber que em nós habitam formigas e cigarras, e que a parceria e a fluidez destas dimensões nos protegem do frio da solidão, das riquezas que não são partilhadas, pois vividas de forma egoísta, da tristeza de uma vida só para produzir, da importância de experimentar a arte, o prazer, sem punição, vergonha e sem desqualificar outras possibilidades de existir e ampliar o vivido.

Que possamos atravessar as estações, os ciclos da vida, sem atacar em nós o que precisa ser acolhido e integrado.