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A vergonha, a timidez ou o desconforto impedem de perguntar na sala de aula, e deixam o solo fértil à permanência e à propagação das dúvidas. Os déficits na formação no Ensino Fundamental se conectam a outras lacunas na aprendizagem e fazem com que a matemática “seja mais difícil”. Para enfrentar esses recorrentes obstáculos na vida de alunos do Ensino Médio, a Escola Profissionalizante Raimundo Célio Rodrigues, em Pacatuba, Região Metropolitana de Fortaleza, 'apadrinha' estudantes. 

Desse modo, a 'temida' disciplina ganha um reforço diferenciado e, em paralelo, os estudantes do 3º ano recebem “mentorias” de preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). 

A unidade que une o tempo integral ao ensino técnico tem 9 anos de criação e está localizada na CE-060, no território que conecta os polos industriais de Pacatuba e de Maracanaú. Lá,  524 estudantes estão matriculados atualmente e podem, em certo momento, usufruir de uma ou até das duas iniciativas de apadrinhamento simultaneamente: padrinhos da Matemática e padrinhos do Enem. 

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Os projetos são desenvolvidos de forma paralela e têm o mesmo princípio: contam com a disponibilidade de professores para atuarem em acompanhamentos mais direcionados dos alunos. Eles se diferem na finalidade. No caso da matemática, o foco são os estudantes com mais dificuldades na disciplina e o desempenho abaixo do esperado. Já no do Enem, todos os estudantes do 3º ano participam e são apadrinhados com orientações individualizadas que auxiliam no percurso rumo ao ensino superior.  

Esta matéria faz parte da segunda edição da série de reportagens especiais, "Terra de Sabidos - escola de todos os tempos", que conta a história de estudantes, professores e gestores de unidades estaduais do tempo integral, discutindo o impacto desse modelo de ensino na vida dos alunos e de toda a comunidade escolar, assim como de cidades inteiras.

Escola Profissionalizante Raimundo Célio Rodrigues
Escola Profissionalizante Raimundo Célio Rodrigues
Legenda: Áreas internas da Escola Profissionalizante Raimundo Célio Rodrigues localizada na CE 060
Foto: Thiago Gadelha

As ações, testemunham professores e alunos, têm gerado impactos positivos nos últimos anos: ajudam, de modo mais dinâmico, a recuperar aprendizagens e são pontos de apoio para aqueles que desejam entrar na universidade. 

Com a nota 6,4, no último Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) - indicador que mede a qualidade educacional das escolas públicas no país, em 2021, a escola tem o 11º melhor resultado dentre as unidades da rede estadual. Esse é também o melhor Ideb das escolas da Região Metropolitana

No Ideb, a qualidade educacional é medida considerando o fluxo escolar e as médias de desempenho nas avaliações.

Além disso, a escola nos dois últimos do Ideb (2019 e 2021) superou a meta estabelecida. Em 2019, o esperado era 5,9 e o alcançado foi 6,2. No de 2021, a projeção era de 6,1 e a nota foi 6,4.Para se ter noção, a escola do Brasil com melhor Ideb de 2021, tem nota 7,6 e fica em Recife. 

Realidade social dos alunos

Na Escola Raimundo Célio tem alunos de Pacatuba, Itaitinga, Guaiúba e Maracanaú, relata o diretor João Paulo Peixoto. Segundo ele, “por ser uma escola que tem uma capilaridade muito grande, dependemos muito do transporte escolar. Então, 90% dos alunos chegam através do transporte escolar”. A cada ano, são abertas 180 vagas e a procura, informa, chega a mais de 1.000 inscrições em cada processo. 

Para que isso ocorra é preciso ter uma cultura escolar voltada para a aprendizagem. O aluno vem aqui, nós tentamos fazer um raio X do que esse aluno precisa para aprender. Para que a escola faça sentido para ele. Não existe coisa pior do que passar um dia inteiro em um local que não tem significado. 
João Paulo Peixoto
Diretor da Escola Profissionalizante Raimundo Célio Rodrigues

Sobre o perfil dos estudantes, explica ele, cerca de 30% dos alunos devido à vulnerabilidade socioeconômica, dependem de auxílio governamental. “Em frente a nossa escola temos uma área indígena e recebemos alunos. Eles, muitas vezes, estão em situação vulnerável. Então, para esses meninos e para outros de territórios com mais dificuldades, a demanda é grande”. 

Os indígenas mencionados são os Pitaguarys de Pacatuba, que têm uma unidade escolar no próprio território, mas jovens do local também buscam a Escola Raimundo Célio, devido à oferta do ensino técnico. “Uma das grandes facetas positivas da educação em tempo integral é a proteção alimentar. Nós temos alunos que se alimentam mais na escola do que nas próprias residências”, completa o diretor. 

refeitório
refeitório
Legenda: Refeitório da escola de tempo integral onde os alunos lancham e almoçam
Foto: Thiago Gadelha

Conexão dos padrinhos e afilhados 

Dentre os projetos que buscam manter o aprendizado e avançar no acesso ao ensino superior, estão: 

  • Padrinhos do Enem: uma mentoria na qual os 30 professores da escola se dividem na orientação direta dos 180 alunos do 3º ano. Cada aluno indica o professor que deseja como padrinho e, organizada a logística, cada docente orienta cerca de 6 alunos por ano. Os professores definem como será a orientação e ela pode ter encontros individuais, resolução de questões, aplicação de simulados, acompanhamento das notas, dentre outras ações. A mentoria vai até a abertura do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) para acesso às universidades.  
  • Padrinhos da Matemática: pode incluir alunos do 1º, 2º e 3º ano e é direcionado àqueles que têm mais dificuldades em Matemática. Os professores da área de exatas (Matemática, Química e Física) organizam grupos de estudos, no horário do intervalo, e juntam os alunos apadrinhados. No reforço são usadas metodologias dinâmicas, como jogos educativos, para o ensino da disciplina. A escola avalia que a formação de grupos reduzidos favorece a maior participação de alunos com mais resistência à exposição na sala de aula. 

Percursos rumo à universidade

O projeto Padrinhos do Enem, explica João Paulo, surgiu da necessidade de “desmassificar a aprendizagem”. “Muitas vezes, o professor chega em sala e usa o livro didático. E a rotina leva o profissional a não perceber se o aluno tem condições de estar ali, se tem pré-requisitos, se tem mais dificuldades. A desmassificação é chegar e dizer: você pode ter dificuldades, mas eu vou lhe apadrinhar”. Na escola, segundo o diretor, 100% dos alunos estão inscritos no Enem. 

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O professor de Educação Física, Lucas Abreu, que está desde 2014 na unidade é um dos envolvidos no projeto. Ele também dá aulas de Empreendedorismo e Educação Cidadã na carga horária flexível do tempo integral e conta que a ideia do apadrinhamento surgiu em 2016. 

Essa mentoria vai observando as afinidades e a gente tenta destrinchar o máximo possível. Por exemplo, quero fazer engenharia, mas qual engenharia? Vamos explicando, mostrando o curso. Trabalho com eles também um plano de estudo. Além da parte emocional. Das questões pessoais, de fora da escola. Eu sinto que eles saem mais conscientes do que querem fazer. 
Lucas Abreu
Professor de Educação Física

Para Lucas, as escolas profissionalizantes “têm muitos artifícios que favorecem que o aluno seja acompanhado da melhor forma”. A base diversificada que conta com o Projeto de Vida, a Formação Cidadã e Mundo do Trabalho, indica ele, exemplificam essa dinâmica. Além de projetos como o do Diretor de Turma e, na escola, especificamente o dos padrinhos. 

“Quando eles chegam no período de estágio da base técnica, eles já têm claro que todos os professores deles têm graduação e caso queiram se tornar técnicos de qualidade precisam também fazer graduação naquela área”. 

Recuperando aprendizagens

No caso da matemática, completa o diretor João Paulo Peixoto, “são geralmente alunos que vêm de uma situação mais vulnerável, alunos que tiveram prejuízo na educação do Ensino Fundamental, e que geralmente não eram percebidos”. A ideia da formação de grupos menores para melhora da aprendizagem, diz ele, ajuda a reduzir a vergonha dos alunos de falarem sobre as próprias dúvidas. 

A opção pela matemática, explica, ocorreu porque a disciplina é um conteúdo chave para a maioria dos cursos técnicos ofertados na unidade. São eles: Administração, Automação Industrial, Eletromecânica e Informática. 

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Legenda: 1. Professora Greycianne Félix com os alunos. 2 Professor Lucas Abreu 3. Diretor João Paulo Peixoto
Foto: Thiago Gadelha

A professora de Química Greycianne Félix trabalha na escola há 6 anos e é uma das docentes que atua no projeto. Ela explica que a ação é protagonizada por professores de química, física e matemática que escolhem os alunos “pelo rendimento”. 

A gente chama esses alunos e tem um apadrinhamento. Acompanha eles que, muitas vezes, têm dificuldades bem básicas. As quatro operações. Coisas que não conseguiram pegar durante a trajetória acadêmica. Como são poucos alunos, conseguimos ter um norte maior, diferentemente de uma sala com 45 alunos. 
Greycianne Félix
Professora de Química

De acordo com ela, a escola tem alunos que entraram no nível muito baixo, mas conseguiram sair com o nível bem melhor devido aos projetos. Na matemática, o reforço é de 30 minutos alguns dias na semana. Para os envolvidos, os professores preparam materiais didáticos com questões básicas, além de conversas sobre as dificuldades.

“Muitas vezes, a vergonha é de perguntar porque o colega entendeu e ele não entendeu. Às vezes, é uma pergunta muito básica que já não é mais uma dúvida de ensino médio, mas é algo que não conseguiu ter uma habilidade e uma competência no ensino fundamental, então, assim, eles travam muito”, relata. 

Reconhecimento de quem sente os efeitos

A lista de quem sente na pele os obstáculos é grande. Mas, muitos, felizmente, tiveram oportunidade de superá-los. O ex-aluno da escola, Magno Oliveira Silva, que cursou o Ensino Médio de 2018 a 2020, é um deles. Hoje, universitário, ele relata que entrou na Escola Profissionalizante Raimundo Célio Rodrigues com o objetivo de fazer o curso técnico de automação industrial. Antes do Ensino Médio, ele só havia estudado em escola particular e sempre no modelo regular. 

Atualmente, ele está no 6º semestre do curso de Engenharia Elétrica na Universidade Federal do Ceará (UFC) e relata: “vejo que o técnico fez muita diferença no meu curso por serem áreas afins. Tem disciplinas que eu atualmente tenho na faculdade que eu já tinha visto boa parte do conteúdo no técnico. Até na questão do horário. Da minha faculdade ser integral. Eu estava acostumado a passar o dia fora de casa. Com isso, o ritmo da faculdade não foi pesado nesse ponto”.   

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Legenda: 1. Apostila do Enem própria da escola 2. Sala de aula 2. Área de entrada da escola
Foto: Thiago Gadelha

Ele foi um dos alunos que passou pelo Padrinhos do Enem e conta que na pandemia, quando estava no 3º ano, ficou “meio perdido nos estudos. Não sabia mais o que eu queria”. Nesse momento, o professor que o apadrinhou “deu muitas sugestões”, conta. “Ele me mostrou as possibilidades e esse guia me ajudou bastante nas minhas decisões e hoje eu me orgulho porque sinto que tomei as decisões certas para o futuro que eu quero”. 

Como diferencial do projeto, ele aponta que: “os professores tem uma relação muito próxima com os alunos. Dão muitos conselhos. E na adolescência, a gente precisa de alguém para nos guiar.” A inserção na mentoria e o trajeto feito a partir dela, se tornou “uma grande conquista para a família”, e completa “quando passei na faculdade, meu pai comemorou, e até raspou o cabelo”. 

Para o também ex-aluno Ednardo Sousa de Oliveira, o Padrinhos da Matemática foi a chance de superar limitações com a disciplina. Ele é um estudante indígena desaldeado e relata que nos fundamental estudou em escolas regulares. Na Raimundo Célio Rodrigues cursou o Ensino Médio de 2018 a 2020.  

Se eu não tivesse entrado na escola de tempo integral profissionalizante, eu não teria tido a oportunidade de entrar na universidade. Talvez, eu teria ido direto trabalhar, como muitas pessoas da minha família que não têm um curso superior. Se eu não tivesse entrado nessa escola, talvez, eu teria continuado o ciclo de terminar o ensino médio e ir procurar direto um trabalho. Esse ciclo foi quebrado.
Ednardo Sousa de Oliveira
Ex-aluno da Escola e integrante do Padrinhos da Matemática

Ednardo diz que já sabia que tinha dificuldades e não conseguia acompanhar tão bem a turma. Mas, reconhecer essa limitação não era fácil. “Todo mundo conseguia e eu ficava meio assim. Mas eles (professores) sempre tentavam nos falar da maneira mais delicada possível para que a gente não se sentisse atrasado”. 

Incluso no reforço no 2º e no 3º ano, ele destaca que era interessante porque diferentemente do momento em sala de aula, no projeto era “mais relaxado”. “A gente tinha acesso a jogos, materiais mais lúdicos, e isso ajudava bastante”. Estar em um ambiente com menos alunos, conta, reduzia a “vergonha de sentir tantas dúvidas”. “Eu sentia que no  reforço, por ser uma turma menor, tinha abertura. Conseguia dizer o que não estava entendendo de forma mais fácil”.  

Hoje, ele cursa Administração Pública na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em Redenção. Deve se formar em 2 anos e será a primeira pessoa da família com curso superior. 

Ednardo Sousa de Oliveira
Luiza Isabele da Silva
Magno Oliveira Silva
Legenda: 1. Ex-aluno Ednardo Sousa 2. Aluna Luíza Isabele 3. Ex-aluno Magno Oliveira
Foto: Thiago Gadelha

Para a estudante, Luiza Isabele da Silva, do 3º ano, a inclusão nos projetos de apadrinhamento são chances reais de melhoria. Ela que faz o curso técnico de Informática, deseja cursar Ciência da Computação. Ela está no Padrinhos do Enem.  “A gente sabe desse projeto desde o primeiro ano, só que os padrinhos a gente só escolhe no terceiro”, completa. 

Ter alguém para ouvir a gente nesse momento é importante porque é um tempo de muitas dúvidas. O padrinho e a madrinha são pessoas que podemos confiar e são os professores que temos mais afinidade. São mais do que um apoio educacional, ajudam também no emocional. 
Luiza Isabele da Silva
Aluna da Escola e integrante do Padrinhos do Enem

A professora de sociologia e geografia é a madrinha de Luíza nesse processo e ela relata que a docente é fonte de inspiração. “Acho ela uma mulher muito inteligente e sempre que eu converso com ela, ela demonstra muito conhecimento e muitas vivências. No projeto, os professores estão muito disponíveis. E minha madrinha sempre fala de como foi a jornada dela na universidade. Com ela ao meu lado, eu sinto que eu vou conseguir”. 

Luíza aponta que na rotina a professora aposta na resolução de questões, no teste com simulados durante os fins de semana, em encontros coletivos e conversas individuais com cada afilhado.