Nordeste independente? Há 200 anos Ceará lutava pela emancipação do domínio português
Um dos capítulos mais importantes da história do Ceará, e ainda assim pouco lembrado, completa 200 anos em 2024. A participação do Estado na Confederação do Equador, movimento que pretendia emancipar os estados do Nordeste dos domínios do Império e instalar um regime republicano, foi bastante fervorosa, mas também duramente reprimida com a morte de seus principais líderes.
Deflagrada em julho de 1824, a revolução contra a opressão monárquica foi inspirada pelos ideais da Revolução Francesa e concebida no Seminário de Olinda, em Pernambuco, que também celebra a data neste ano. No Ceará, as comemorações do Bicentenário da Confederação se iniciaram oficialmente em junho e devem durar um ano.
Para remontar o período, mostrar quem foram seus principais personagens e iniciativas para lembrar o movimento atualmente, o Diário do Nordeste inicia hoje a publicação de uma série em três reportagens. Além de consultar especialistas que estudaram a fundo a tentativa de revolução, se vale de relatos históricos disponibilizados pelo Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico), fundado em 1887.
Para compreender o processo insurgente brasileiro, é preciso entender primeiro o contexto internacional da época. Segundo Margarida Cantarelli, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Pernambuco (IHGP), a Confederação do Equador foi inspirada pela reunião de ideias de revoluções ocidentais com grandes pensadores nacionais.
Como principais elementos que formariam o pensamento dos revoltosos, ela cita:
- 1ª Revolução Industrial (1760): iniciada na Inglaterra, provocou mudanças nos movimentos sociais e uma corrida por matéria-prima e abertura de novos mercados;
- Independência dos Estados Unidos (1776): o fato permitiu a disseminação das ideias de república, liberdade e origem do poder no povo;
- Revolução Francesa (1789-1799): pregava a separação do Estado e Igreja, estruturação de poderes e valorização da Constituição.
Além disso, o ideal iluminista de liberdade política, econômica e religiosa já chegava ao Nordeste, já que, segundo Margarida, as elites da região possuíam bibliotecas atualizadas e tinham leituras bem avançadas.
Nordeste em ebulição
Naquele início do século 19, existia profunda insatisfação popular com as péssimas condições de vida e desgosto das elites locais, cujos interesses econômicos conflitavam com os da Coroa Portuguesa. A família real chegou ao Brasil em 1808, demandou aumento de impostos para manter o luxo da Corte e distribuiu cargos administrativos a portugueses, em detrimento de brasileiros.
Esse caldeirão levou à Revolução Pernambucana de 1817, cujos moldes foram forjados no Seminário de Olinda. Os rebeldes, vitoriosos contra o governador português Caetano Montenegro, chegaram a proclamar a República de Pernambuco e a implantar um Governo Provisório que durou pouco mais de dois meses. A Revolução ecoou pelas capitanias vizinhas e alcançou a Paraíba, o Rio Grande do Norte e o Ceará.
Assim que a rebelião foi conhecida por Dom João VI, o monarca mobilizou uma frota para bloquear o porto de Recife. A capital também foi invadida por terra, em maio daquele ano, e os líderes do movimento foram presos e condenados à morte.
Qual o papel do Ceará na Revolução Pernambucana?
No Ceará, Bárbara de Alencar, pernambucana radicada no Cariri cearense, e seus filhos, Tristão Gonçalves e José Martiniano, também aderiram ao movimento. À época, a família dona de terras e engenhos buscava ampliar sua influência política pela região. José chegou a proclamar a República na Vila do Crato, no dia 3 de maio, seguida pela Vila de Jardim, onde o tio Leonel Pereira era juiz. Porém, a iniciativa só durou 8 dias.
Para evitar desdobramentos maiores e seguindo a repressão de outros Estados, eles foram presos pelo capitão-mor do Crato, Pereira Filgueiras, por ordem do governador Manuel Inácio de Sampaio. Embora, tempos depois, tenham sido libertados, os Alencar mantiveram os ideais republicanos vivos e disseminaram os ensinamentos a amigos e seguidores.
Até 1824, foram sete anos de “efervescência constituinte”, como aponta José Filomeno Moraes, doutor em Direito, sócio efetivo do Instituto do Ceará e pesquisador da Confederação no Estado. Muito dela alimentada pelos Alencar, ainda que aqueles 8 dias tenham acarretado “muito sofrimento sobre a família e seus seguidores, na forma de mortes e prisões, confiscos e humilhações”, lembra ele.
Nasce a Confederação do Equador
Uma nova fagulha revolucionária surgiu em março de 1823, quando Dom Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte convocada a discutir a primeira Constituição para o Brasil recém-independente. Ele mandou prender quem defendeu a limitação dos poderes reais e impôs à nação uma Constituição Outorgada, ou seja, criada sem discussão ou votação.
Na leitura de Margarida Cantarelli, aquele não poderia ser enquadrado como um texto constitucional porque conferia ao imperador um poder moderador, um “superpoder” sobre os demais (Executivo, Legislativo e Judiciário). Na prática, os Estados - cujos revolucionários defendiam um pacto social - continuavam sem soberania.
A maior insatisfação com o fato ocorreu em Pernambuco. Eleito pela província, Manuel Paes de Andrade foi deposto pelo Império e substituído por outro governador. A revolta foi o estopim para a formação de um governo independente, que contagiou as províncias vizinhas do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte, e batizada em referência à linha imaginária do equador, que passa próximo à região do conflito.
O Ceará recebeu as mesmas influências pelo diácono José Martiniano de Alencar, que à época estudava no Seminário de Olinda - onde conheceu Frei Caneca, mentor intelectual da Confederação.
O frenesi foi tanto que, em 9 de janeiro de 1824, na Câmara da Vila de Campo Maior (hoje Quixeramobim), o padre Gonçalo Inácio de Loiola (mais tarde Padre Mororó) declarou decaída a dinastia dos Bragança, proclamou a primeira República do Brasil e determinou a organização de um governo republicano.
“Ou seja, se exigia como fonte de legitimidade a representação popular que Dom Pedro havia suprimido com a sua outorga”, aponta Filomeno.
As Câmaras das Vilas de Icó e Granja logo aderiram à causa. Em 2 de fevereiro, Tristão Gonçalves e Pereira Filgueiras, agora aliados, comandaram a adesão do Crato.
Naquele período, muitos revolucionários adicionaram nomes de plantas, animais e acidentes geográficos para salientar seu nacionalismo:
- Padre Gonçalo de Loiola - Padre Mororó
- Tristão Gonçalves - Tristão Araripe
- Feliciano José da Silva - Feliciano Carapinima
- João de Andrade Pessoa - Pessoa Anta
- Francisco Miguel Pereira - Miguel Ibiapina
Em camadas populares, também foram verificadas adesões: diversas mulheres adotaram sobrenomes como Juriti, Jaçanã e Araruna. Em 1º de abril, Padre Mororó se torna editor e começa a publicar o Diário do Governo do Ceará, primeiro jornal impresso do Estado, que contou com 19 volumes.
O Grande Conselho e a repressão
Em 2 de julho, proclamou-se oficialmente, em Recife, a Confederação do Equador. No Ceará, é o dia 26 de agosto que ganha os holofotes da historiografia: a Confederação chega a Fortaleza, onde foram congregadas mais de 400 pessoas, incluindo forças políticas, clero, “nobreza” e povo.
O Grande Conselho elege Tristão como novo presidente da província, destituindo o governista Pedro José da Costa Barros do cargo. Naquele dia, o cratense foi imortalizado como a grande figura do movimento no Ceará.
Já no dia 28, instala-se o colégio eleitoral da província para eleger os deputados que deveriam representar o Ceará no conselho federativo, pois a revolução se preocupava em elaborar uma Constituição a partir de uma Assembleia Constituinte legítima. Foram eleitos nomes como José Martiniano, Miguel Ibiapina, José Ferreira Sucupira e o padre José da Costa Barros Jaguaribe (irmão do governador monarquista).
O sonho patriótico, contudo, durou pouco, e o cerco foi se fechando contra Tristão Araripe. Em 13 de outubro, chega ao porto de Fortaleza uma nau com o lorde escocês Thomas Cochrane, defensor dos interesses de Pedro I. Cinco dias depois, o líder cearense se afasta do governo para combater monarquistas em Aracati. Seu substituto, José Félix de Azevedo e Sá, rende-se à ameaça do lorde sem resistência e jura lealdade ao imperador.
No contra-ataque, Cochrane foi “sanguinário”, segundo Filomeno Moraes. Com a violência, as câmaras das vilas vão, pouco a pouco, hasteando novamente as bandeiras imperiais.
“Depois vem a repressão e muita vergonha: gente entregando os colegas, negando qualquer participação e jurando de pés juntos que jamais traiu a monarquia”, aponta Filomeno.
Sem protetores e com aliados mortos ou presos, Tristão inicia uma fuga pelo interior do Estado até ser capturado no sítio Santa Rosa, hoje município de Jaguaretama. Ele foi assassinado barbaramente e teve várias partes do corpo arrancadas. Dias depois, decidiram sepultá-lo perto de uma capela. Recebendo a notícia, Pereira Filgueiras se rende, é preso e morre a caminho do cárcere.
Com os líderes derrotados, a vingança dos setores realistas sobre o povo se materializou em incêndios, degolas, torturas e estupros, entre outras violências. Além disso, quase 3 mil jovens cearenses foram obrigados a ir para a guerra; muitos deles pereceram nos conflitos ou por doenças.
Para julgar os “crimes” dos inconfidentes, foi constituída uma comissão presidida pelo português Conrado Jacob de Niemeyer, que exercitou a função “com mão de ferro” e fez os diversos mártires do Ceará: Padre Mororó, Pessoa Anta, Francisco Ibiapina, Azevedo Bolão e Feliciano Carapinima foram assassinados no Passeio Público, no Centro da cidade, entre abril e maio de 1825.
“Foi um mês de muito sangue e de folguedos, para quem via naquele espetáculo macabro uma ocasião para o riso e para o deboche”, lamenta o pesquisador.
E os Alencar? Além da morte de Tristão, o irmão Carlos e o tio Leonel foram assassinados. Bárbara de Alencar, então com 64 anos, sobreviveu ao conflito e ainda se envolveria em disputa com o capitão monarquista Pinto Madeira, que a jurou de morte. Resistente às perseguições, ela só faleceria em 1832, aos 72 anos, na cidade de Fronteiras, no Piauí.
O último filho dela, José Martiniano, foi preso em Pernambuco, enviado ao Rio de Janeiro e depois de volta ao Ceará. No fim das contas, foi absolvido e entrou de vez na vida pública. Teve 13 filhos, entre os quais o escritor José de Alencar, e foi um dos homens mais influentes da política brasileira do Primeiro e do Segundo Reinado.
Consequências da Confederação
Demoraria até 1889 para o Brasil se tornar uma República Federativa, mas as sementes já estavam plantadas. Apesar da forte repressão e do pagamento da revolta em sofrimento e sangue, “o Ceará constituiu uma peça do mosaico da construção da Independência e da nação brasileira”, compreende Filomeno Moraes.
Para ele, a luta patriótica do período, embora carente de “realismo político”, obteve resultados positivos na concepção de um país constitucional. Antes “obedientes” aos mandos e desmandos locais, os habitantes de diversas localidades se mostraram mais afeitos à soberania popular e doutrinas semelhantes.
Veja também
Margarida Cantarelli vai além: a Confederação batia de frente contra a Independência, patrocinada por agentes internacionais e com único intuito de perpetuar a monarquia. Já os nordestinos buscaram a liberdade amparada por uma Constituição elaborada a muitas mãos.
“Não foi em vão o sofrimento dos nossos herois e heroínas; uns perdendo a vida, outros a liberdade. Porque o nosso compromisso é seguir seus passos na defesa da soberania popular, da liberdade e da democracia. Essa história não tem fim”, acredita a estudiosa.
Comemorações no Ceará
Foi pela ausência de comemorações dos bicentenários de 1817 e 1822 no Estado que a Fundação Sintaf de Ensino, Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico, Científico e Cultural (Fundação Sintaf) decidiu não deixar o da Confederação passar em branco. Através de uma parceria com Governo do Estado, Instituto do Ceará, Assembleia Legislativa, Arquivo Público e Museu do Ceará, a entidade elaborou uma programação até abril de 2025.
A abertura das celebrações ocorreu no fim de junho. Ao longo de um ano, devem ocorrer audiências públicas, seminários científicos, publicações de estudos, exposições itinerantes e apresentações de uma peça teatral, ainda em desenvolvimento, retratando momentos-chave da Confederação.
Liduíno Lopes de Brito, diretor geral da Fundação Sintaf, acredita que o Brasil tem uma dívida com o Nordeste, já que o movimento de 1824 deixou 16 mártires na busca pela independência verdadeira do país. “Porque o Ceará, com tantos herois numa data tão importante, não faria nada?”, provoca. “A Confederação não foi um movimento rebelde de separação, mas de liberdade”.
Na reportagem de amanhã, você conhece a história de Padre Mororó, um dos principais revolucionários do Ceará ao lado de Tristão Gonçalves, e outras figuras que foram executadas em praça pública por participarem do movimento no Estado.