Há 10 anos, nasciam as primeiras crianças com Síndrome Congênita associada à infecção pelo vírus Zika (SCZ), um conjunto de anomalias congênitas que ocorreram em embriões ou fetos expostos à infecção pelo vírus Zika durante a gestação. A maioria dos bebês apresentou microcefalia, quando o cérebro não se desenvolve de maneira adequada. 

A partir do diagnóstico clínico, as mães dessas crianças se uniram em coletivos para formar uma rede de apoio e de luta pelos direitos dos filhos. “Nós unimos a dor e a necessidade de cada uma dessas famílias para transformar em luta”, explica Luciana Arrais, atual presidente da Unizika, uma organização sem fins lucrativos que defende a vida de 1.589 crianças em todo Brasil. 

A intensa mobilização das mulheres resultou numa grande conquista: em julho deste ano, foi promulgada a Lei 15.156/2025 que prevê uma indenização de R$ 50 mil em parcela única e uma pensão vitalícia cujo valor corresponde ao teto do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) para pessoas com deficiência permanente decorrente de síndrome congênita associada à infecção pelo vírus Zika. 

Essas iniciativas não se referem apenas a dinheiro, o que é indispensável, mas também à dignidade dessas famílias. Ao terem suas vidas marcadas para sempre por uma doença em seus filhos, mães, pais e responsáveis precisam lidar com demandas que necessitam de investimento financeiro e emocional, o que impacta em toda uma cadeia de existências

Os bebês nascidos com a Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZ) seguem enfrentando desafios, principalmente a invisibilidade. Neste especial jornalístico, o Diário do Nordeste traz um panorama da vida dessas crianças nesses 10 anos após a epidemia. 

microcefalia

A norma que da indenização é originada do projeto de lei 6064/23, apresentado pela então deputada federal Mara Gabrilli (SP). A proposta tramitou no Congresso Nacional durante uma década e chegou a ser aprovado em dezembro de 2024, mas foi vetada pelo Governo Federal em janeiro de 2025 com a justificativa de que o projeto não obedecida à Lei de Diretrizes Orçamentárias.

O Congresso Nacional derrubou o veto neste ano, e a Medida Provisória 1.287/2025 foi assinada em maio. Além disso, a Lei também aumenta em 60 dias o direito à licença-maternidade e ao salário-maternidade de mães de crianças nessas condições, e em 20 dias o direito à licença-paternidade.

A foto mostra uma jovem com cabelo escuro e óculos, vestindo uma blusa vermelha, está sorrindo e abraçando uma criança com cabelo escuro que veste uma camiseta cor de mostarda. A criança está olhando para cima com a boca aberta, parecendo rir alegremente. Eles estão sentados em um sofá marrom.
A foto mostra três pessoas estão sentadas em um sofá marrom. À esquerda, uma mulher mais velha com cabelo escuro e óculos está sorrindo para a câmera. No meio, uma criança com cabelo escuro e uma camiseta cor de mostarda está olhando diretamente para a câmera com uma expressão neutra. À direita, uma mulher mais jovem com cabelo escuro e óculos, vestindo uma blusa vermelha, está sorrindo para a câmera com o braço em volta da criança.
Legenda: Tamires se dedica a cuidar de Miguel de forma integral, com apoio da família, inclusive da mãe
Foto: Thiago Gadelha

Tamires Passos, mãe de Miguel, e Luciana Arrais entendem que nova decisão do Governo Federal é uma reparação histórica por toda essa década de lutas, incertezas e desafios. “Eles reconheceram que nossos filhos foram vítimas de uma negligência, uma epidemia em saúde pública de caráter internacional por conta da falta de controle com o mosquito”, reforça Arrais. 

"Se eu não tivesse sido picada por esse mosquito [Aedes aegypti], meu filho não teria nascido assim. O mosquito foi uma falta de cuidado do governo com o saneamento básico. Essa indenização para a gente é uma reparação de um descaso e uma negligência do Estado"
Tamires Passos
mãe de Miguel, 9 anos

Já Eliseuda Ferreira, mãe de Lara Sofia, diz que a indenização é importante, mas hesita: “a gente já foi negada em tantas coisas, né? Tudo o governo nega, tudo bota dificuldade. E aí fica só alimentando o coração da gente. Certo que vai ser um dinheiro que vai servir muito, para comprar uma cadeira de roda boa, uma cadeira de banho adaptada. Eu digo que só acredito quando tiver assim, ó, na minha conta”, afirma. 

Nos últimos dez anos, essas famílias sobreviveram graças ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), uma vez que a necessidade de dar atenção às crianças e as terapias que custam tempo fizeram com que muitos pais e mães dessas crianças parassem de trabalhar ou estudar. 

Na casa de Miguel Passos, no bairro Benfica, o auxílio é usado para pagar o plano de saúde. Já na casa de Lara, no Cidade Jardim, o BPC paga as despesas da casa, fraldas e alguns insumos do dia a dia. No entanto, esse valor ainda é baixo para atender as necessidades das crianças. “Ou você paga o aluguel, ou paga o plano. Se começar a trabalhar, perde o BPC”, detalha Luciana Arrais. 

A foto mostra uma mãe sentada ao ar livre, segurando uma criança com vestido rosa estampado e meias rosas. A criança está com a cabeça apoiada no ombro da pessoa. Ao fundo, há plantas, uma cadeira plástica branca virada e uma mesa redonda.
A foto mostra uma mãe sentada ao ar livre, segurando uma criança com vestido rosa estampado e meias rosas. A criança está com a cabeça apoiada no ombro da pessoa. Ao fundo, há plantas, uma cadeira plástica branca virada e uma mesa redonda.
A foto mostra uma mãe sentada ao ar livre, segurando uma criança com vestido rosa estampado e meias rosas. A criança está com a cabeça apoiada no ombro da pessoa. Ao fundo, há plantas, uma cadeira plástica branca virada e uma mesa redonda.
Legenda: Na família de Lara Sofia, o BPC é usado para pagar as despesas da casa e insumos
Foto: Thiago Gadelha

Antes da promulgação da Lei 15.156/2025, as mães conquistaram, em 2020, uma pensão vitalícia de um salário mínimo para as crianças vítimas da síndrome congênita, por meio da Lei 13.985/2020. A norma assegurava o pagamento a crianças nascidas de 1º de janeiro de 2015 a 31 de dezembro de 2019. Porém, os dois benefícios não podem ser acumulados. 

Agora, a nova conquista é fundamental para dar um melhor atendimento para as crianças e prover qualidade de vida para as mães e crianças. "O que sonhei para o meu filho durante nove meses de gestação e, por conta dessa negligência, meus sonhos foram frustrados. Nenhuma indenização conseguiria trazer isso de volta, mas consegue fazer com que os outros sonhos que foram plantados no meu coração diante da situação consigam se tornar realidade", diz Tamires. 

microcefalia

REDE DE APOIO

Crianças que nasceram com a Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZ) precisam de cuidados intensos, que geram sobrecarga emocional e cansaço físico das mães e cuidadores de crianças atípicas. Tamires fala que, quando Miguel nasceu com a microcefalia, se viu sozinha e perdida em meio a esse novo mundo, pois a realidade dela é diferente da maternidade tradicional. 

"Além de todo o cuidado que a maternidade exige, seja ela qual for, a maternidade atípica exige um cuidado excessivo. A gente realmente se anula para cuidar totalmente do outro", reforça. A luta e o cansaço pesam, mas o amor pelos filhos o que a impulsiona diariamente. “Eu digo que não imagino mais nem a minha vida sem essa loucura que é”, completa.

Assim, os coletivos de mães, como a Unizika, se tornaram local de suporte e acolhimento. “A gente se entende, né? A nossa dor é uma dor real e compartilhada uma com a outra. O amor é o que nos move e nos faz se levantar todo o dia para lutar”, diz Tamires. 

O adoecimento não é só mental, mas físico também. Em 2024, Luciana foi diagnosticada com câncer de mama e passou pelo tratamento em meio à luta no Congresso Nacional pela pensão vitalícia para crianças que nasceram com microcefalia causada pela zika. 

“A minha imagem na plenária mostra por A + B que mães também adoecem e de doenças graves. Às vezes não é só a saúde mental, mas também doenças do corpo”, fala. Para Luciana, o Brasil não possui uma política voltada para os cuidadores. 

A foto mostra duas pessoas com os rostos. Uma veste camiseta azul-escura com estampa colorida e texto; a outra usa blusa azul-clara sem mangas e está sentada, levemente inclinada para trás. A pessoa de camiseta está inclinada sobre a outra
A foto mostra mãe e filha na piscina, a menina usa blusa laranja enquanto a mulher usa um maiô colorido e está abraçando-a
Uma pessoa está segurando uma criança no colo. A criança está sobre o ombro, e a pessoa que a segura aparece de lado, com o cabelo preso
Legenda: Luciana Arrais se tornou voz importante das mães de crianças com microcefalia no Ceará e no Brasil
Foto: 1 e 2: Arquivo Pessoal e 3: Lucas Barbosa

Nesses 10 anos, o período da pandemia do coronavírus causou atrasos no desenvolvimento das crianças com microcefalia associada à infecção da arbovirose. Muitas ficaram sem atendimento médico e as terapias necessárias para a evolução neuropsicomotora. As mães tentaram se virar em casa, fazendo fisioterapias para não deixar o corpo das crianças parado, “mas nada como um profissional fazendo”, como conta Tamires Passos. 

Além disso, cirurgias eletivas precisaram ser adiadas. No caso de Miguel, ele precisava realizar um procedimento cirúrgico para tratar a luxação no quadril, que foi remarcado quatro vezes. Com o atraso, o grau da luxação aumentou e “ele teve que fazer uma maior porque a pequena já não servia mais”, explica a mãe. 

Um dos locais de atendimento a esse público, o Núcleo de Tratamento e Estimulação Precoce (Nutep) não parou durante o período de isolamento social, segundo o presidente da instituição, o médico neuropediatra Lucivan Miranda. Moradoras do bairro Cidade Jardim, Eliseuda Ferreira, mãe de Lara Sofia, levava a filha uma vez ao mês para ter acesso aos atendimentos na instituição devido à distância e o medo de contaminação. “Ficava a critério das mães se dava para ir ou não ao Nutep”, diz. 

microcefalia

NOVA EPIDEMIA

Quando se fala em uma possível nova onda de casos de Zika e Síndrome Congênita, a presidente da Unizika, Luciana Arrais, é cética ao comentar se o país é capaz de enfrentar a situação com melhor capacidade. “O Brasil não aprendeu absolutamente nada. Ele pesquisou e talvez até saiba o que pode fazer, mas não tem estrutura para isso porque nunca se importou”, comenta. 

O médico neurogeneticista do Hospital Infantil Albert Sabin (HIAS), André Pessoa, afirma que ainda não se sabe se os casos podem voltar. A principal hipótese é que a população tenha passado por uma imunização de massa. Ou seja, “as pessoas foram expostas ao vírus e desenvolveram anticorpos”. 

Além disso, o profissional acredita que a ciência e medicina avançaram na descrição e detecção da doença. “Para as gerações futuras, vai ser uma doença bem estabelecida, os médicos saberão o que pesquisar, quais os riscos, como se testa e se examina”, afirma. Mesmo com o aprendizado clínico, o que falta é a prevenção da arbovirose. “É um problema de saúde pública a questão do controle do vetor [...] A ciência é totalmente capaz de resolver com vacina”, diz.

Uma das formas de prevenir uma nova epidemia é a eliminação do mosquito Aedes aegypti, vetor de diversas arboviroses. Em Fortaleza, a SMS aponta que a Prefeitura realiza durante todo o ano, diversas ações, para controlar as doenças transmitidas por ele. Entre as atividades estão: 

  • Visitas domiciliares dos agentes de combate às endemias;
  • Aplicação de larvicidas em áreas de maior incidência;
  • Monitoramento de pontos estratégicos;
  • Capacitação constante das equipes de saúde;
  • Campanhas educativas.