‘Pandemia de violência sexual’, alerta procuradora sobre casos de crianças e adolescentes vítimas
Por trás do incômodo que Mônica Mota sentia durante brincadeiras na infância, estava a violência sexual em ambiente intrafamiliar. "Eu sabia que tinha algo de errado, mas eu não elaborava aquilo como violência enquanto criança", diz a assistente social, hoje aos 28 anos, parte de uma estatística que aterroriza.
O Diário do Nordeste publica nesta quarta-feira a segunda reportagem da série: ‘Acolhidos’.
A Ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) apontou um crescimento de 22,6% nas denúncias de crimes contra crianças e adolescentes em 2024. Segundo o órgão, foram aproximadamente 290 mil registros em um ano.
No Ceará, conforme dados extraídos pela reportagem a partir das estatísticas disponibilizadas pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), 78% das vítimas de crimes sexuais são crianças e adolescentes. A maioria delas adolescentes de 12 a 17 anos.
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Para a procuradora de Justiça, promotora e coordenadora do Núcleo de Acolhimento às Vítimas de Violência (NUAVV) do Ministério Público do Ceará (MPCE), Joseana França, vivemos em um cenário que se equipara a uma “pandemia de violência sexual”.
A Delegada titular da Delegacia de Polícia Civil de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente do Ceará, Patrícia Sena, acrescenta: "99% dos autores desse tipo de crime são pessoas próximas à vítima, ou mãe, ou pai, vizinho, tio, avô... A maioria é identificado de imediato". Como no caso de Mônica.
"Dos seis aos 12 anos sofri esse abuso que me era apresentado como uma brincadeira, um jogo. No Ensino Médio, com 14 anos, eu falei pela primeira vez que fui vítima de violência sexual para um professor meu. Eu tinha mudanças bruscas de humor, crises que hoje eu entendo que eram crises de ansiedade. Esse professor levou pra eu assistir um vídeo da Xuxa falando sobre violência sexual. Ali eu entendi", revela Mônica.
Quando disse à família o que vinha passando, ouviu frases do tipo: "ah você confundiu carinho com violência, ah ele é uma boa pessoa, ah mas se você ficar por aí falando isso vai destruir uma família. Eu sei como é necessário um acolhimento".
‘TODO MUNDO TEM QUE NOTIFICAR’
“É muito triste o que está acontecendo sobre a violência sexual. Hoje a gente faz um trabalho de notificação muito grande. Vem de todos os lugares e eu repito que todo mundo tem que notificar. Infelizmente isso está se naturalizando e isso nos traz uma preocupação imensa”, diz a procuradora Joseana França lembrando que nos últimos meses a equipe do NUAVV prestou atendimento a um caso de um bebê de seis meses com o ânus dilacerado.
A assistente social e técnica de escuta especializada do Nuavv, Elayne Cristina Ferreira, reforça que o NUAVV tem alta demanda: “como somos um equipamento de referência estadual, mesmo que hoje a Lei da Escuta Especializada tenha se capilarizado nos municípios, a gente segue sendo referência estadual”.
“É um aumento exponencial nos casos. A gente tem um número importante de meninos, mas com certeza crianças e adolescentes mulheres têm um número mais significativo”
“Nós recebemos demandas de todos os tipos todos os dias. Essa fala da dra Joseana que remete a uma pandemia de violência, eu diria que é quase um número de barbárie isso que estão fazendo com as nossas crianças e nossos adolescentes. 60 a 70% das demandas que recebemos são de violência intrafamiliar. Ou seja, a grande parte é praticada por quem era para proteger essas crianças”, diz Elayne.
do total de crianças e adolescentes vítimas de crimes sexuais no Ceará do sexo feminino
A delegada Patrícia Sena diz que recentemente recebeu um caso de uma vítima de oito anos de idade: "ela conheceu uma pessoa em um desses jogos online. A criança tinha aparelho celular e com acesso ao Whatsapp. Esse criminoso começou as conversas e pediu fotos da criança sem calcinha, fotos dela seminua. A mãe dela só descobriu quando teve acesso à nuvem (arquivos) do aparelho da vítima".
"Temos ainda casos que a vítima diz: ah eu não achava legal o que meu pai fazia, mas não sabia que era proibido. E isso independe da classe social"
VOZ ÀS VÍTIMAS
A assistente social do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA Ceará), Mara Carneiro, destaca que a nível nacional existe um processo de fragilização das vítimas.
“Obviamente que a visibilidade do serviço de denúncia, as campanhas, fazem chegar mais casos. Então há um aumento no número de pessoas que notificam. No entanto, não podemos explicar o aumento apenas por isso. Muitos agressores são pessoas próximas à criança, que têm a imagem social aparentemente ilibada. Essa ambiência permissiva da violação de direitos nos preocupa”, pontua Mara.
Joseana garante: “as demandas vêm de todas as partes, principalmente dos hospitais. Tudo que você pode imaginar chega aqui”, se referindo à demanda das vítimas de violência recebidas no NUAVV.
Com intuito de unir forças, Mônica passou a ser ativista da causa: “Idealizei algumas ações, como uma corrida de rua com tema pra falar sobre violência sexual e aí percebi que para falar com as crianças eu não tinha nada lúdico, então escrevi um livro pensando sobretudo na criança que eu fui. Se em algum momento da minha infância eu tivesse tido acesso a algo lúdico, possivelmente eu teria me visto como vítima antes”.
“Qualquer situação de violência é traumática. Imagina uma violência sexual que envolve toda a questão da culpa, da violação do corpo. Toda violência carrega uma marca psicológica grande”
Enquanto isso, a Polícia esbarra na subnotificação: “soube de um caso? Procure a delegacia mais próxima, denuncie, faça o boletim de ocorrência e de imediato vamos começar as investigações. Pedir também a medida protetiva para afastar o abusador é essencial”, expõe a delegada.
- Como chegar à Delegacia de Polícia Civil de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente do Ceará (Dceca)
- Contatos: 3101-7589 ou denunciar no 181, Disque Denúncia da SSPDS
- Endereço: Rua Capitão Melo, 3883, bairro São João do Tauape, Fortaleza
ESCUTA ESPECIALIZADA E DE REFERÊNCIA
Mara recorda a importância da escuta protetiva ser uma escuta que não revitimiza. “É essencial esse ambiente propício, acolhedor para a escuta. Trabalhamos para a criança sair dessa situação e em seguida uma reparação de direitos, como essa criança vai desenvolver e refazer sua vida após a situação traumática. Por último, precisamos responsabilizar os violadores sexuais”, diz.
Joseana França se orgulha de “hoje, nacionalmente, o protocolo de escuta especializada de crianças e adolescentes vítimas de violência no Ceará ser uma referência e reconhecido no Brasil”.
O protocolo, conforme Elayne Cristina, é seguido com base em um roteiro de perguntas, primeiro aplicado ao adulto de referência da criança ou do adolescente.
“É aqui (no MP) que eu tento fazer diferença nessa realidade, é nesse trabalho.Eu sei que a gente pode chegar a todos os cantos”
“Tentamos entender o que aconteceu com a criança, quando aconteceu, quando foi e por onde essa criança já peregrinou até chegar para nós. Quando a criança entra, ela entra sozinha. Desde que ela entra na sala nós explicamos que é uma conversa. Não existem perguntas diretas sobre a violência, mas existem as ‘perguntas-gatilho’, como quando a gente pergunta se tem algo que essa criança sente medo. Isso traz muitas revelações”, afirma Elayne.
Das dores físicas às emocionais, uma das ‘preocupações’ é entender como a violência atravessou a vida daquela vítima.
“Com o conhecimento da rede de proteção a gente vai articulando o atendimento, para onde essa criança deve ser encaminhada, qual serviço vai acolher. Os próximos atendimentos são no sentido de superar a violência. É preciso quebrar esse ciclo”, confirma Elayne.
Nesta sexta-feira será publicada a terceira reportagem da série.