A política engoliu o humor e o amor da crônica brasileira

Escrito por
Xico Sá producaodiario@svm.com.br
Foto: Agência Brasil

Minha primeira noção deste gênero literário foi ainda nos anos 1970, ouvindo a “Crônica de Geraldo Menezes Barbosa”, na Rádio Progresso. Juazeiro parava, ao meio-dia, para ouvir o grande cronista. O assunto imediatamente influenciava nas conversas de bar, bodega e consultório do Cariri, do Nordeste e do mundo.

Depois do rádio, foi a vez dos livros, na escola, com a coleção “Para gostar de ler” (editora Ática), sempre com textos comoventes ou muito engraçados, pérolas inesquecíveis de Fernando Sabino, Drummond, Rachel de Queiroz e tantos outros.

Veja também

De lá para cá, a crônica mudou, ainda meio ranzinza, perdeu o humor em tempos do embate — só se fala de política ou futrica.

Cadê o lirismo que estava aqui?

O gato comeu.

O felino da lacração e o angorá da polarização limparam o lirismo da crônica popular brasileira. Não havia outro jeito.

Não dava para ficar apenas seguindo a borboleta amarela pelas ruas do Rio de Janeiro ou absorto na varanda vendo o homem sair do mar lentamente.

Cadê o lirismo que estava aqui?

A cadela no cio jantou até o osso.

A crônica, no seu modo pé-de-milho, foi a primeira grande vítima da política na última década. Os Rubens possíveis foram à passeata.

Restou um ou outro para ser acusado, injustamente, de isento. Estava esse solitário cronista zelando para manter o gênero vivo.

Sobreviveu, disse a primeira pomba a voltar para a arca. Está viva e se bulindo.

Paulo Mendes Campos diz ufa, e toma, na paz dos melancólicos, o seu terceiro uísque.

Os bares reabrirão automaticamente, mesmo os bares falecidos na pandemia ou nas quartas de cinza.

A crônica se escondeu na barriga do lobo, caro Pellanda, e escapou do cidadão de bem do Clube de Tiro.

Foi por pouco, mas sobreviveu a crônica com ajuda do homem azul do deserto, criatura de Cidinha da Silva. Por um triz, pode crer, está viva. Viva como o pequeno defunto que leva os óculos para ver o nada do outro mundo. Coisas de Humberto Werneck — sempre de plantão para ressuscitá-la.

Sim, o último obituário mais solene se deu na pandemia da Covid-19, em 18 de dezembro de 2020, quando a Folha de S. Paulo decretou, no embalo de uma efeméride: “Rubem Braga, morto há trinta anos, levou para o túmulo a crônica clássica brasileira”.

Óbvio que havia uma certa crise no ar. Muitos colegas de ofício se queixavam que o lirismo ou o humor haviam sofrido um sequestro por parte da realidade política. Estávamos mais para articulistas metidos a ranzinzas do que para os sabiás. A urgência das tretas e as trevas do bolsofascismo nos arrastaram aos textões, argh, vixe, uia.

Naquele momento, cobrado por alguns românticos leitores, mandei a autocrítica: Cadê o amor que estava na minha crônica? O gato esfomeado da realidade comeu. Cadê o lirismo vagabundo sem compromisso com a hora do Brasil? Virou ração do mesmo insaciável felino.

Àquela altura, Tati Bernardi fazia um manifesto: “Socorro, Rubem Braga!”.

Maria Ribeiro, na Vejinha carioca, apelava ao mesmo homem dos passarinhos.

A realidade braba havia espantado os sabiás. Minha terra tinha palmeiras.

Ao Antonio Prata sobrou o puxão de orelha paterno do Mário Prata — aquele do humor e da leveza —, que rogou para que o rebento largasse os temas do bafo político.

A morte e as mortes da crônica. E ela sobreviveu como a lua na caixa d’água, no assobio de Aldir Blanc para Marcelo Moutinho. Madureira!

“A morte da crônica é a morte da literatura em sua face cotidiana, da literatura mansa desprovida de ambições e ganâncias e cobiças”, escreveu Julián Fuks, pouco depois da pandemia.

E a crônica escapou no lombo do elefante azul de Samarone Lima, na viagem de Imperatriz para o Crato, porque meninos veem elefantes azuis no país do semiárido — mas somente no lusco-fusco, e quando viajam no banco traseiro de um fusca.

A crônica respira por causa de Joaquim Ferreira dos Santos, Ana Miranda, Martha Medeiros, Fabrício Carpinejar, Socorro Acioli... Ave, Veríssimo.

A escritora Giovana Madalosso revelou outro dia que o gênero segue cronicamente viável. Agora com as rolinhas urbanas de São Paulo no lugar dos sabiás mineiros ou cariocas.

E justiça seja feita ao cronista-mor da Cidade da Bahia, o rapaz mantém viva a linha gregoriana do “ridendo castigat mores” — rindo, corrigem-se os costumes ou, em uma tradução mais livre, com humor e fuleragem a gente escapa dessa merda toda. O homem das ingresias, Franciel Cruz, mostra que não carecemos ficar presos a draminhas burgueses e existenciais. Dá sim para meter poesia e política na crônica popular brasileira. Receba.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

Assuntos Relacionados