Em meio à tragédia da pandemia de Covid-19, a uma CPI em curso no Senado Federal e a inúmeros outros fatos políticos que certamente exigiriam mais urgência da classe política, um tema controverso – e insistente – é colocado novamente à tona numa agenda pública paralela: o voto impresso no Brasil. Não bastasse o momento inadequado para tal debate no Poder Legislativo, é preciso observar a quem – e por que – isso interessa a esta altura.
Não é de hoje que a bandeira, que tem como maior defensor o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), ecoa entre seus apoiadores, mas, nos últimos dias, ela saiu do campo da retórica – e da mobilização orquestrada nas redes sociais – para, aparentemente, ganhar mais espaço no Parlamento.
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), em mais um gesto de uma independência questionável, decidiu criar a comissão especial que analisará uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que quer instituir o voto auditável.
Ao lado do presidente em Maceió, na última quinta-feira (13), ele defendeu que a Casa deve se debruçar sobre o tema para que “não paire dúvida na cabeça de nenhum brasileiro”. O discurso fora o mesmo do chefe do Palácio do Planalto no dia anterior.
Veja também
Ainda na capital alagoana, durante evento de entrega de casas do Residencial Oiticica I, o ministro do Turismo, Gilson Machado, chegou a perguntar se o presidente da Câmara “vai botar para moer” sobre o voto auditável. Lira gesticulou positivamente como resposta. Com isso, agrada a Bolsonaro.
É uma campanha recorrente do presidente que, objetivamente, não encontra fundamento. Ora em tom que beira a ameaça, como quando disse que “sem voto impresso, não haverá eleição em 2022”, ora em tom de desconfiança em relação ao sistema eleitoral brasileiro, como quando insinuou que, no Brasil, “se acostumaram com o errado”, sem apresentar nenhuma prova de fraude eleitoral.
A autoridade maior do País, que chegou ao poder a partir de votos depositados na urna eletrônica, assim, parece querer usar do assunto muito mais como cortina de fumaça com interesses próprios do que para um aperfeiçoamento efetivo de um sistema que se comprova seguro, servindo de exemplo, inclusive, para outros países.
Embora não seja uma pauta necessariamente recente, a defesa do voto impresso é com frequência usada como uma carta na manga em momentos nos quais o Governo Federal está sob pressão.
Já existem, conforme a Justiça Eleitoral, mecanismos de segurança da informação capazes de garantir a integridade das eleições. A cada dois anos, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) reitera que a urna eletrônica não é suscetível a ataques hackers externos, visto que não está ligada a redes de conexão.
Além disso, os tribunais executam a cada pleito uma série de procedimentos de auditoria e verificação dos resultados, que possibilitam a transparência necessária ao processo eleitoral.
Há o que se melhorar? Certamente. E as instituições podem discutir isso em conjunto, incluindo especialistas, com responsabilidade e real espírito de cooperação com a democracia. Não como estratégia de guerra, antissistema, que mais pode fragilizar do que aperfeiçoar. Defender o voto impresso apenas por conveniência é irresponsável.
No âmbito de uma reforma eleitoral, há ainda outras questões mais urgentes a serem encaradas pelo Congresso Nacional diante de distorções claras às regras já existentes.
Outros temas, como a manutenção ou troca do sistema eleitoral (fala-se no “distritão” ou no voto distrital misto, por exemplo) e a reserva de vagas para mulheres no Legislativo – política afirmativa importantíssima, inclusive por poder ser mais eficiente do que a cota de gênero, infelizmente sujeita a fraudes por parte dos partidos –, parecem suscitar discussões vistas como mais oportunas entre parlamentares.
Veja também
A própria relatora da reforma política, deputada federal Renata Abreu (Podemos-SP), chegou a indicar recentemente que a unificação das eleições e a adoção do voto impresso, assuntos sem consenso, poderiam ficar para plebiscitos junto da eleição de 2022. Até lá, haveria mais tempo para discutir possíveis mudanças.
Não se trata, portanto, de silenciar o debate. Uma consulta pública do Senado sobre a adoção do voto impresso em 100% das urnas, por exemplo, já soma mais de 1 milhão de votos. É outro indicativo de que há interesse na discussão, mas ela não pode ser feita na base da chantagem de risco à ordem institucional.